No último dia 5, o Ministério da Educação confirmou formalmente a suspensão da criação de novos cursos de medicina no Brasil, que já havia sido ventilada no final do ano passado. A medida foi bem recebida por entidades médicas, que nos últimos anos passaram a cobrar uma fiscalização maior dos novos cursos após o afrouxamento das regras ocasionado pelo Programa Mais Médicos. Por outro lado, grupos de ensino particulares se manifestaram contra o que consideraram um excesso do governo, que teria cedido às pressões dos profissionais da saúde.
“Infelizmente, o governo optou por atender a classe médica em detrimento da sociedade”, lamenta Sólon Caldas, diretor executivo da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (ABMES), que representa entidades privadas. “O grande problema é que os conselhos extrapolam as suas atribuições. A atribuição do conselho é regular a profissão, mas em vez disso eles querem regular a parte acadêmica, regular o funcionamento dos cursos, algo que compete ao Ministério da Educação”, diz Caldas. “E isso que o setor da educação superior já é um dos mais regulados do país”.
Para o governo e as organizações que defendem a necessidade da moratória, a portaria vem como um “freio de arrumação”, um ajuste do sistema após a ampliação de vagas ocorrida desde 2013, com a menor regulamentação promovida pelo Mais Médicos. “O país efetivamente não tem infraestrutura para abrigar um crescimento tão rápido de escolas médicas no país”, garante Diogo Leite Sampaio, vice-presidente da Associação Médica Brasileira (AMB). “Tanto não tem essa capacidade que o governo, à época, promoveu um afrouxamento na avaliação de qualidade e de abertura, facilitando o credenciamento de hospitais de ensino e os editais de chamamento para as escolas médicas”.
Má distribuição
Hoje, graças a medidas que concorrem para ampliar os cursos de medicina existentes e facilitar a criação de novos, o Brasil ultrapassou as 31 mil vagas para estudantes na área. Quando se consideram os profissionais já atuantes no mercado de trabalho, os números do país seguem o mínimo recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Em um país com população estimada em 207 milhões de habitantes, o Conselho Federal de Medicina (CFM) registra mais de 453 mil médicos em todo o território nacional. No geral, são cerca de 2,19 profissionais para cada mil brasileiros, enquanto a recomendação da OMS é que o número seja pelo menos um a cada mil. A meta do Mais Médicos era elevar o patamar para 2,7 até 2026.
Existe, no entanto, uma grande desigualdade na concentração de médicos ao redor do país. A região com os melhores números é a Sudeste, que conta com mais da metade dos profissionais: por lá, a média é de 2,90 médicos a cada mil habitantes, número superior ao de países como Canadá e Estados Unidos, que têm uma proporção de cerca de 2,5 profissionais por mil pessoas, de acordo com dados da OMS. Por outro lado, estados do Norte e do Nordeste sofrem com a escassez. O último colocado no Brasil inteiro é o Maranhão, com número abaixo até mesmo do padrão mínimo recomendado internacionalmente – cada mil maranhenses hoje têm à disposição uma média de 0,75 médico, quantidade inferior à de países como o Iraque (0,85). Dentro dos estados hoje marginalizados, também ocorre uma segunda concentração, com a maioria dos médicos radicados nas capitais.
“Desde que a lei do Mais Médicos entrou em vigor, de 2013 a 2018, voltou sarampo, a tuberculose piorou, a hanseníase piorou, a febre amarela reapareceu... O grande problema do país é a gestão. O que se passou nos últimos cinco anos foi a preocupação com número. Com a quantidade, não com a qualidade”, entende o médico. Os baixos salários e as más condições de trabalho, com a constante falta de medicamentos e equipamentos, são apontados como razões principais para que certas áreas nunca consigam superar seu déficit de profissionais.
Na visão de Sólon Caldas, da ABMES, a má distribuição independe da situação dos novos cursos. “Isso é muito mais um problema estrutural do que uma questão de ter muito ou pouco médico. O governo tem que repensar a política de condições para fixar o profissional num determinado local”, indica. “Agora, isso é um problema de política pública, que não vai ser resolvido estancando a oferta de mais cursos de medicina no país. Quem sabe se está faltando médico para atender a sociedade carente é a população e não o Conselho de Medicina”.
Próximos passos
A portaria do governo impede a abertura de editais para criação de novos cursos pelos próximos cinco anos, mas não interrompe o estabelecimento daqueles que já estavam em processo de instalação: os editais 06/2014, que previa a abertura de 2.305 vagas, e o edital 01/2017, com a autorização de pelo menos 155 vagas. A moratória também deixa aberta a possibilidade de abertura de novas vagas no período de cinco anos, desde que isso ocorra nos cursos já existentes.
“A premissa pétrea é a garantia de qualidade do médico formado nos cursos existentes no país”, interpreta José Pio Martins, reitor da Universidade Positivo, que já oferece a formação em medicina e vê com bons olhos a decisão do governo. “O MEC viu que esse aumento (causado pelo Mais Médicos) ajudou a amenizar a falta de médicos, mas também acendeu uma luz amarela na questão da qualidade. Logo, a proibição de aumentar cursos e vagas por cinco anos é uma espécie de ‘freio de arrumação’. Se daqui a três anos tudo estiver bem, nada impede que o governo revogue a proibição e autorize novos cursos”.
Para a ABMES, a portaria do MEC, como está, pode levar a uma defasagem de até duas décadas para que novas instituições se vejam habilitadas a colocar profissionais no mercado. “O último edital grande já foi há cinco anos. Vamos supor que o governo libere um novo daqui a cinco: já terão sido dez anos, e ainda tem que esperar outros quatro até concluir o processo de um novo edital e mais seis para um aluno de medicina se formar. Nós estamos falando de 20 anos sem ter novos médicos oriundos de novos cursos”, alerta Sólon Caldas.
“Isso é um retrocesso, está totalmente na contramão das necessidades do país. O governo atual optou por atender a classe média em detrimento da população brasileira, mas pode ser que após as eleições a situação seja revertida. A portaria pode ser revogada, e é isso que vamos pleitear”, promete Caldas.
O entendimento de Diogo Leite Sampaio, da Associação Médica Brasileira, é de que a suspensão de novos cursos e o grupo de trabalho criado pela portaria ajudarão a estabelecer padrões que garantam a qualidade dos cursos. Segundo ele, o objetivo no longo prazo é estabelecer critérios de avaliação não apenas das escolas médicas, mas também de seus egressos. “O aluno pode ter se formado em uma universidade muito boa e ser um péssimo médico. Há exames como o do Conselho Regional de Medicina de São Paulo, por exemplo, que mostram que a grande maioria dos médicos recém-formados não sabe identificar uma apendicite, não sabe ler uma mamografia, não sabem observar um diagnóstico no ultrassom. A população precisa ser protegida dos médicos que se formam mal”, defende o vice-presidente da AMB.
“O médico mal formado é muito pior para a saúde da população do que não ter médico em uma região. É melhor a pessoa ser encaminhada a outro posto de saúde do que receber um diagnóstico errado, um tratamento errado, que pode levar até mesmo a óbito daquele paciente”, afirma Sampaio.