O programa do Ministério da Educação (MEC) é buscado por estudantes como Gabriela Morais, 22 anos, que pretende cursar medicina veterinária. Ela já tentou contratar o Fies duas vezes e não conseguiu por causa da renda. "Meu pai é professor da Secretaria de Educação. Eles consideram que os professores ganham bem, mas não consideram que eles são super endividados, têm salários congelados há anos", conta a jovem. "Tem muita gente que precisa e não consegue o Fies. Eles precisavam rever o programa", defende.
Com dificuldades, a família da Gabriela tentou pagar a faculdade por três semestres, mas a jovem precisou trancar os estudos. "A faculdade é integral, não dava nem para trabalhar", explica. Com o sonho adiado, Gabriela conta que fica ansiosa sem saber os rumos que sua vida vai tomar. Agora, ela pretende achar um cursinho gratuito para estudar e tentar passar na Universidade de Brasília (UnB), instituição pública que não cobra mensalidade.
Quando Gabriela buscou o Fies, o auge do programa já havia passado. O número de contratos disparou durante o primeiro governo Dilma Rousseff (PT), de 76 mil em 2010 para 733 mil em 2014, com juros abaixo da inflação, obtenção do financiamento a qualquer momento do ano e prazo de quitação maior. Mas o programa começou a perder força no início do mandato seguinte, com 287 mil estudantes beneficiados em 2015.
Passado o boom, a oferta de financiamento recuou ao patamar do início da década - serão oferecidos 100 mil contratos por ano até 2021. Mas a demanda não para de crescer.
40% não têm como pagar mensalidade
Em 2010, 4,7 milhões de brasileiros estavam matriculados em cursos superiores privados. Nos oito anos seguintes, a população do país cresceu em 9,4%, enquanto a quantidade de alunos em faculdades privadas aumentou em 42%. Essa fatia representa quase 3/4 dos mais de 8 milhões de matriculados no ensino superior atualmente.
Segundo um estudo realizado pela Associação Brasileira de Mantenedoras do Ensino Superior (ABMES) em parceria a empresa Educa Insights, 40% dos estudantes não têm condições de arcar sozinhos com as despesas da mensalidade nos cursos de graduação. O mesmo levantamento aponta que 51% dos estudantes acharam que as últimas mudanças no Fies dificultaram o acesso ao programa e mais da metade dos estudantes nunca nem ouviu falar do P-Fies (quando o financiamento é feito por um banco privado).
Na família Chaves, o Fies foi um sucesso e um fracasso. Jaqueline, de 25 anos, conseguiu o Fies em 2012 e em 2016 terminou seu curso de jornalismo em uma instituição privada de Brasília. Atualmente, paga prestações de um pouco mais de R$ 300 referentes ao financiamento com juros. Na época em que ela contratou o empréstimo, os juros eram subsidiados e as regras do programa eram bem mais flexíveis.
Já a irmã Julianie Chaves, de 20 anos, tentou contratar o Fies em 2017, após as principais alterações no programa, mas não teve sucesso. A estudante, então, optou por pagar a faculdade de fisioterapia. Ela ainda conseguiu uma bolsa parcial por ter tirado uma boa nota no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), mas ainda assim as mensalidades ultrapassam R$ 1.000.
Julianie sentou para conversar com o pai, que é servidor público, para ver se ele teria condições de arcar com os custos. "Ele fez as contas e disse que sim, mas estou vendo a hora que não vai dar mais", lamenta.
"O Fies, como está agora, não tem condições. Vejo pela minha turma mesmo, só tenho três colegas que conseguiram o Fies e ainda é preciso fazer um jogo de cintura", critica a estudante.
Para o coordenador de Relações Internacionais da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Leandro Tessler, o modelo do programa antigamente era ruim e sem controle, mas com as últimas mudanças ele passou a ser ineficiente. "O Fies se transformou em uma modalidade de financiamento como outra qualquer. Deixou de ter função social."
Baixa adesão
Atualmente, o Fies pode ser contratado por quem tirou nota igual ou superior a 450 pontos no Enem, e que não tenha zerado a redação. As vagas ofertadas na modalidade governamental são limitadas e têm taxa de juros zero. Nesse caso, o interessado precisa ter renda familiar mensal per capita de até três salários mínimos.
Para os estudantes que tenham renda entre três e cinco salários mínimos, existe a possibilidade de contratar a modalidade recente do P-Fies - com taxa de juros fixa de 6,5% ao ano. "O governo federal quis aumentar a participação das instituições privadas, porque eles acreditam na corresponsabilidade", explica o consultor legislativo na área de financiamento estudantil, Ricardo Martins.
Ele atuou juntamente com o deputado Alex Canziani (PTB-PR), relator da Medida Provisória 785/17, que reformulou o Fies. Para Martins, as mudanças tornaram sustentável o programa. "O resultado hoje é uma limitação da participação do governo federal no Fies, que consequentemente freia a expansão de vagas."
Ainda assim, ele afirma que essa modalidade do Fies não deslanchou porque algumas instituições hesitam em aderir.
As instituições de ensino superior privadas têm demonstrado preocupação com a baixa adesão ao programa. Membros da ABMES tentam audiência com o presidente da República, Jair Bolsonaro (PSL), para debater melhorias no programa. Segundo o assessor jurídico da entidade, Bruno Coimbra, o formato não tem despertado o interesse dos estudantes.
"As mudanças, principalmente do P-Fies, ainda são muito tímidas. Acreditamos que o governo precisa criar mais vagas, e os bancos privados e de fomento, abraçar a causa", disse Coimbra. Para ele, o Fies deve ser visto como um investimento em educação. "Tem caráter social e de incremento para economia. Defendemos uma estruturação responsável do programa, também não nos interessa alunos inadimplentes", diz Coimbra.
No modelo de crescimento acelerado no governo Dilma, as instituições privadas recebiam repasses do governo federal para bancar os alunos do Fies. O grupo Kroton-Anhanguera foi a empresa que mais recebeu pagamentos do governo federal em 2014. Foram repassados mais de R$ 2 bilhões para 12 mantenedoras do grupo.
Segundo Paulo Meyer, especialista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o programa tinha tantas facilidades que muitas instituições privadas incentivavam os estudantes a contratarem o financiamento mesmo podendo pagar a mensalidade. Por isso, o orçamento multiplicou e o número de contratos nesse período também, mas a média anual de aumento de estudantes na rede privada passou de 5%, entre 2003 e 2009 para 3% a partir de 2010.
Já as mensalidades aumentaram desde 2011, em média, 2,9% ao ano, como apontaram dados elaborados pela CM Consultoria com base na Análise Setorial do Ensino Superior Privado da Hoper Educação. Sendo assim, os gastos do governo federal saltaram 647% desde 2011, enquanto o número de contratos cresceu quase a metade, 374%. No período, foram R$ 24 bilhões de recursos do Tesouro e 1,2 milhão de novos contratos.
Modelo internacional
O novo modelo do Fies é baseado parcialmente em práticas de financiamentos estudantis bem sucedidas em outros países como Austrália, Inglaterra e Nova Zelândia. Na época da formulação da lei, houve troca de experiências entre o governo federal e especialistas australianos que vieram ao Brasil.
No novo formato do Fies, o estudante pode pagar o financiamento no futuro de acordo com a sua renda. O desconto será feito direto em folha no caso dos recém-formados que tiverem emprego formal. Quem não estiver empregado, terá descontada apenas uma parcela mínima de mesmo valor cobrado durante o curso.
Isso na opinião de Meyer, do Ipea, é positivo porque dá ao estudante uma certa segurança de que ao final ele vai conseguir pagar, mesmo que pouco. No entanto, segundo ele, os estudantes ainda têm muito receio de firmar contratos, principalmente porque não entendem como o programa funciona.
No ano passado, o governo de Michel Temer (MDB) pretendia incluir 310 mil novos alunos no Fies. De acordo com o Ministério da Educação, das 100 mil vagas ofertadas na modalidade governamental com taxa de juros zero, foram firmados 82 mil contratos. Já na modalidade denominada de P-Fies, mais de 2.500 contratos estão em andamento.
Meyer critica ainda a modalidade do governo federal a juros zero por falta de sustentabilidade financeira. "O subsídio é ainda maior do que antes", afirma. Na opinião do economista, para bancar o novo formato, o governo federal precisou garantir algumas amarras. "Para o governo dar juros zero significa que ele está pegando subsídios de outras fontes. O dinheiro para o governo não é de graça, por isso ele está colocando complicações. O empréstimo para ele sai caro", conclui Meyer.
A alternativa, segundo Meyer, seria o crédito educativo com amortizações condicionadas à renda. Ele defende que as prestações sejam coletadas pelo Imposto de Renda, porque é mais uma garantia para o estudante. "No momento em que a Receita Federal conseguisse identificar renda, eles começariam a cobrar", explica. O especialista afirma que, no longo prazo, o Fies precisa voltar a se expandir, mas com um mecanismo eficiente de coleta dos pagamentos.
A estratégia do governo federal para o segmento inclui também o Programa Universidade para Todos (Prouni), que distribui bolsas em instituições particulares para estudantes de baixa renda. Desde 2005, já atendeu a mais de 2,4 milhões de estudantes, sendo 69% com bolsas integrais - o desempenho no Enem serve como um dos critérios de seleção.
Em resposta à reportagem sobre o futuro dos programas federais para o ensino superior, o MEC afirmou que "em 2018 as políticas públicas de acesso ao ensino superior do MEC foram responsáveis pela oferta de mais de 640 mil vagas à população brasileira, em instituições públicas e privadas. Novas informações oficiais sobre o Fies serão divulgadas oportunamente."
Inadimplência se aproxima de 50%
Mais mudanças nas regras do Fies passaram a valer no início de 2018 para contratos novos. Os estudantes com financiamento em andamento poderão migrar aos poucos.
A principal alteração foi o fim da carência de 18 meses. O estudante deverá iniciar o pagamento no mês seguinte ao término do curso, desde que esteja empregado. O prazo máximo para pagamento será de 14 anos.
O dinheiro será descontado diretamente do salário, por meio do eSocial do INSS. Com isso, o governo federal espera a redução da inadimplência no cumprimento dos contratos, limitação do risco da União, melhora nas condições de financiamento e racionalização das amortizações.
Dados divulgados pelo MEC mostram que a taxa de inadimplência é de quase 50%. De acordo com o órgão, mais de 450 mil ex-alunos que já estão na fase de amortização não estão em dia com o pagamento das parcelas.
Para auxiliar nesse processo, foi criado o Programa Especial de Regularização do Fies para aqueles que tiverem contratos atrasados, com parcelas vencidas até 30 de abril de 2017, possam fazer o pagamento quitando 20% do saldo em cinco vezes e o restante em até 175 parcelas. Com isso, o MEC espera que a inadimplência caia para 30%.
Outra medida de garantia prevista na nova lei do Fies é a implementação de um Fundo Garantidor, que deve ter recursos do governo federal e também das instituições privadas. A ideia é que os riscos sejam compartilhados com as universidades.
A informação oficial é de que o fundo garantidor do Fies cobriria 90% da inadimplência do programa estudantil com recursos provenientes das instituições de ensino. O fundo seria formado por recursos enviados pelas próprias universidades, que reverteriam 6,25% das mensalidades financiadas para isso.