Além de interferir na rotina de quem já está matriculado no ensino superior este ano, a pandemia de covid-19 também vai impactar aqueles que pretendem entrar na universidade em 2021. Afinal, com calendários suspensos e aulas a distância no ensino médio, qual é a expectativa para o estudante que está no ano de prestar o vestibular?
Na maior parte dos países do hemisfério norte, o ano acadêmico começa em meados de agosto e setembro, e as seleções são realizadas ainda no primeiro semestre. Devido à pandemia, diversos vestibulares foram adiados. Na França, o vestibular nacional Baccalauréat (BAC) foi suspenso e a seleção para universidades, realizada por um sistema de avaliação contínua das notas escolares. Na China, o Gaokao, maior exame de acesso ao ensino superior do mundo, teve sua data inicial postergada e foi aplicado apenas em julho. Nos Estados Unidos, o SAT, teste de aptidão escolar, teve seu cronograma suspenso e algumas universidades deixaram de exigir a prova como pré-requisito para os ingressantes.
No Brasil, além da preocupação com a manutenção ou adiamento dos vestibulares, há o receio sobre como as universidades vão acolher os novos estudantes, sendo que o calendário acadêmico de diversas instituições foi totalmente modificado devido à pandemia. Não há mais um padrão para o início e fim do ano para os universitários.
Com 34 unidades, a Universidade Estadual Paulista (Unesp), por exemplo, preferiu não escolher uma única forma de lidar com a pandemia no primeiro semestre do ano: enquanto alguns cursos estavam com as aulas suspensas, outros seguiram em atividade com ensino remoto. “Devido às especificidades dos cursos e à dimensão da Unesp, entendemos que os docentes, amparados por critérios mínimos para continuidade das disciplinas em ensino remoto, poderiam escolher a melhor metodologia para dar continuidade de forma não presencial às disciplinas”, explica Gladis Massini-Cagliari, pró-reitora de graduação da universidade.
Assim a instituição não terá um calendário único para todos os cursos, mas calendários locais de acordo com o avanço das aulas em cada faculdade. Os cursos que tiverem maior acesso a aulas remotas sentirão menos os impactos sobre o cronograma escolar.
Já a Estácio, assim como a PUC-SP, buscou padronizar o tipo de ensino e oferecer aulas remotas síncronas, permitindo que o calendário acadêmico permanecesse intacto. “Se não houver diálogo entre as universidades públicas, privadas e com a rede de ensino básico, para discutir calendário e quando é que vai começar o ano letivo de 2021, nunca teremos essa resposta”, critica Maria Inês Fini, pedagoga e ex-presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), órgão do governo responsável por avaliações do sistema educacional brasileiro. Fini ainda aponta que o papel de discutir um calendário viável para as universidades é do Ministério da Educação (MEC), o que, na visão da especialista, não está sendo feito.
Outro ex-presidente do Inep, professor Luiz Cláudio Costa, hoje vice-reitor do Instituto de Educação Superior de Brasília (Iesb), também acredita que, no cenário atual, cada instituição de ensino terá de corrigir por conta própria o calendário nos próximos semestres: “Onde as aulas estão suspensas ou que ainda não entraram no formato remoto, o primeiro semestre do próximo ano deve começar bem tarde”.
Adiamento do Enem muda o acesso às universidades públicas
O primeiro edital do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) 2020 foi divulgado no dia 31 de março, quando o Brasil registrava 5.812 infectados por covid-19 e 202 mortos. Nele, o Inep confirmava as datas das provas do Enem Digital e do Enem Impresso para os meses de outubro e novembro de 2020, respectivamente.
Logo após a divulgação, estudantes e entidades estudantis começaram a protestar e pedir o adiamento do exame. Na época, as aulas da rede pública na educação básica já estavam suspensas e a preocupação era com as condições ainda mais desiguais de preparação para a prova que seriam criadas para esses alunos, muitos deles nem sequer com acesso à internet para acompanhar conteúdos transmitidos a distância. A hashtag #AdiaEnem chegou a ficar em primeiro lugar nos trendings topics do Twitter Brasil.
Porém, foi apenas em 20 de maio que o então ministro da educação, Abraham Weintraub, confirmou a suspensão do calendário inicial e anunciou que realizaria uma consulta pública com os candidatos inscritos para saber em quais dias as provas deveriam ser aplicadas: 30, 60 ou 180 dias após as datas previstas no edital.
Para a pedagoga Maria Inês Fini, a realização da enquete foi uma decisão errada: “Essa é uma decisão política do governo. Quem tem que decidir quando será o exame é o MEC em contato com as escolas de ensino médio e com as redes de ensino superior, não tem nada do estudante decidir como ele quer a prova. Isso é um absurdo”.
Na consulta pública, os estudantes escolheram realizar a prova em maio de 2021, porém, após alinhamento com secretarias estaduais de educação e órgãos representativos das universidades públicas e privadas, o Inep anunciou que a prova seria realizada em janeiro do próximo ano, contrariando o resultado da enquete. “A gente também está atendendo à necessidade desses alunos que votaram. Como dissemos desde o início, a enquete não seria o único parâmetro para a definição da data. Também ouvimos os secretários de Educação e demais representantes das entidades educacionais”, afirmou Alexandre Lopes, atual presidente do Inep.
Apesar da tentativa de conciliar interesses dos estudantes e das universidades, as novas datas do Enem não deixaram de trazer impactos para as instituições. A Unesp, que pretendia adotar ainda neste ano um processo seletivo exclusivamente com base nas notas do Enem, possivelmente adiará a novidade para a próxima seleção. A Unicamp, que reservaria 20% das vagas de graduação para ingresso por meio da nota do Enem, também afirmou que não vai utilizar a prova para seleção de candidatos no vestibular deste ano.
Por outro lado, a Universidade de São Paulo (USP) confirmou que manteria a destinação de 2.905 vagas de acesso à instituição via o Sistema de Seleção Unificada (Sisu), que se baseia justamente na nota do Enem.
Calendário das instituições privadas também deve ser afetado
Se as universidades públicas se preocupam com o adiamento do Enem por causa da utilização da nota do exame no Sisu, as instituições privadas também terão problemas para adaptar seu calendário. Elas precisarão garantir o ingresso de alunos que usam a nota do Enem para entrar nas faculdades com as bolsas de estudo do Programa Universidade Para Todos (Prouni) e os financiamentos do Fundo de Financiamento Estudantil (Fies).
Para Sólon Caldas, diretor executivo da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (Abmes), apesar da realização do Enem só em janeiro, o calendário acadêmico não pode sofrer grandes alterações: “Sem dúvida, o Enem irá comprometer o cronograma do ano que vem, mas o calendário acadêmico das instituições de ensino não pode ficar esperando o resultado da prova. Até porque pode prejudicar os alunos que estão matriculados e que não dependem desse resultado”.
Na PUC-SP, 25% dos alunos da graduação contam com algum tipo de bolsa ou programa de apoio para estudar, boa parte deles por meio do Prouni e do Fies. “Eu sou uma defensora do Prouni de muito tempo, porque ele trouxe para a universidade quem não tinha acesso. Então, me preocupa muito o que vai acontecer. Nós vamos ter que nos adaptar, nós não vamos abrir mão de ter esses estudantes”, compromete-se Maria Amalia Andery, reitora da PUC-SP.
No Iesb, em Brasília, o calendário será adaptado para não excluir qualquer tipo de estudante. “O Iesb terá aulas remotas até o fim do ano porque o mais importante agora é a segurança dos estudantes, professores e funcionários. Porém, nós vamos fazer o nosso calendário de 2021 olhando para esses programas de acesso e evitando afetar aqueles que já estão na faculdade”, afirma o vice-reitor Luiz Cláudio Costa.
A Laureate Brasil, responsável pela operação de instituições como Anhembi Morumbi e FMU, apesar de ainda não ter nenhuma previsão sobre o calendário acadêmico de 2021, garante que continuará aceitando a nota do Enem para ingresso em suas instituições.
Também indefinida está a situação do formato das aulas no próximo ano. Outro importante grupo educacional, a Estácio, não possui ainda uma programação fechada, mas assegura ter um planejamento estruturado para quando for possível voltar totalmente ao ensino presencial. “Ainda não sabemos por quanto tempo perdurará esta situação, mas, até o presente momento, nosso calendário está mantido com as aulas ao vivo. E temos um planejamento com uma série de medidas preventivas, para garantir a segurança e a saúde de alunos e professores no retorno da modalidade presencial”, afirma Adriano Pistore, vice-presidente de Operações Presenciais da Estácio.