Cerca de 12 mil contratos do Fies (Fundo de Financiamento Estudantil) no Paraná estão com pagamentos em atraso, totalizando um rombo de mais de R$ 260 milhões, segundo informações do programa divulgadas pela agência de dados Fiquem Sabendo.
O FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação) encaminhou à organização, via pedido de informação, uma planilha com a soma dos saldos devedores de contratos inadimplentes por curso, estado e município. Os dados foram informados pelo órgão em junho e distribuídos pela agência em 12 de agosto.
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O Comitê Gestor do Fies considera inadimplentes contratos com prestações não pagas a partir de 90 dias após o vencimento da prestação, na fase de amortização do programa — etapa em que as parcelas da dívida começam a ser pagas pelo aluno.
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No País, estão com pagamentos em atraso 522.417 contratos cuja soma das dívidas supera R$ 11,4 bilhões. O FNDE informou que o total de dívidas em fase de amortização se aproxima de R$ 20 bilhões, considerando-se também contratos adimplentes. Os dados abrangem contratos firmados desde 1999, quando o programa foi criado.
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Alunos e fiadores em atraso sofrem restrição nos órgãos de proteção ao crédito. O FNDE prorrogou até 10 de outubro o prazo para a renegociação de contratos inadimplentes em fase de amortização no Banco do Brasil e na Caixa Econômica Federal.
CIDADES
Nos cursos de Londrina, são mais de 1.700 contratos com pagamentos em atraso, superando R$ 38 milhões em débitos. Os cursos com o maior número de inadimplentes no município são Direito (197 devedores), Administração (144), Educação Física (120) e Engenharia Civil (107). O valor médio da dívida por aluno nesses cursos varia entre cerca de R$ 15 mil e R$ 38 mil.
A dívida média mais elevada ocorre no curso de Odontologia, cujo débito de apenas 36 contratos inadimplentes é de R$ 3,1 milhões — R$ 86,5 mil por pessoa. Cursos da área de saúde concentram as maiores médias de saldo devedor por aluno, chegando a R$ 148,5 mil no caso de estudantes cursos de Medicina de Maringá, onde 12 pessoas devem quase R$ 1,8 milhão.
Curitiba tem o maior número de contratos com pagamentos em atraso: 4,2 mil. O maior passivo do estado está nos cursos de Direito da capital: o débito ultrapassa R$ 17 milhões. O curso tem os maiores saldos devedores também em Londrina, Cascavel, Maringá e Foz do Iguaçu.
De acordo com o professor do curso de pedagogia da USP (Universidade de São Paulo) José Marcelino de Rezende Pinto, ex-presidente da Fineduca (Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação), a inadimplência é uma constante no histórico dos programas de crédito para a educação no Brasil. Segundo ele, o problema remonta à criação do Creduc (Crédito Educativo), em 1975. O programa foi extinto com uma taxa de inadimplência de 84%.
“Quanto mais se amplia a abrangência, maior a chance de inadimplência. Qualquer pessoa que analisasse a expansão do Fies perceberia que se tratava de uma bolha que iria explodir”, diz.
Marcelino critica a lógica do programa, que, segundo ele, acabou estimulando instituições privadas a “caçar” alunos pobres e “mandar a conta para o governo”. Como política pública, o equívoco estaria em tentar elevar a taxa de matrículas na população de 18 a 24 anos utilizando a grande ociosidade de vagas em instituições privadas como “atalho”.
“O Fies acabou fomentando instituições especulativas, mais preocupadas com o financiamento do que com a educação”, diz o professor, para quem os recursos públicos gastos com o programa teriam sido mais bem empregados na expansão da rede de instituições federais de ensino superior. A tendência, para ele, é que o rombo continue aumentando, e que a conta acabe sobrando para os cofres públicos.
Por e-mail, o diretor executivo da ABMES (Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior), Sólon Caldas, disse que a inadimplência “não é uma exclusividade do Fies” e está relacionada com o crescimento do desemprego no País. O diretor defendeu que o governo desenvolva uma política pública de suporte aos estudantes inadimplentes.
A entidade se posiciona contra a redução do programa e propõe um novo desenho, em que o governo financiaria 100% do valor das mensalidades, enquanto os estudantes iniciariam os pagamentos já no mês seguinte à contratação e as instituições de ensino ofertariam desconto nas mensalidades de alunos beneficiados pelo Fies.
'RECEITA PARA A CRISE'
Quase a metade dos contratos inadimplentes no País está distribuída nos cursos de Administração (47.184 contratos), Direito (44.347), Pedagogia (34.549), Enfermagem (24.166), Educação Física (23.714), Gestão de Recursos Humanos (19.189), Ciências Contábeis (19.034), Engenharia Civil (15.289), Fisioterapia (11.210) e Psicologia (10.824).
A concentração, segundo o professor do curso de pedagogia da USP José Marcelino de Rezende Pinto, está relacionada com o perfil de vagas ofertadas pelas instituições de ensino superior privadas. Em sua maioria, trata-se de cursos cuja implementação é mais barata, já que demanda estruturas mais simples, sem necessidade de laboratório. “É cuspe e giz”, diz Marcelino.
O mercado de trabalho para estas formações, contudo, está altamente saturado — cenário agravado pelo alto nível de desemprego, lembra o professor. “Essas pessoas, que já têm menor capital cultural, fazem cursos sem muito prestígio e entram no mercado com chances reduzidas”, avalia Marcelino.
“Muitas vezes elas nem sabiam que estariam assumindo uma dívida para o resto da vida. E entram no mercado com um diploma de pouco valor, carências na formação e ainda com o nome sujo na praça. É a receita completa para acentuar a crise econômica que o País está vivendo”, diz.
NOVA ESPERANÇA
Entre os maiores saldos devedores no Paraná, chama a atenção o caso de Nova Esperança (Noroeste). Com população estimada em 27.904 habitantes em 2019 pelo IBGE, a cidade tem 267 contratos inadimplentes com o Fies — número equivalente a quase 1% da população e superior aos contratos devedores listados em Ponta Grossa (217), que tem 351.736 habitantes.
A maioria dos débitos em Nova Esperança é do curso de Pedagogia, com 121 contratos e débito de R$ 2,2 milhões. O rombo total na cidade é de R$ 5,6 milhões, somando também Serviço Social, Ciências Contábeis, Administração e Letras (Português).
Os cursos eram ofertados pela Fanp (Faculdade do Noroeste Paranaense), que teve as atividades suspensas em 2018. Criada em 1997, a instituição foi integrada à rede Uniesp em 2012.
Parte da inadimplência em cursos da instituição decorre de contratos gerados a partir de um programa chamado Uniesp Paga, entre 2011 e 2014. Na ação promocional, a faculdade prometia pagar a dívida do aluno com o Fies após a conclusão do curso desde fossem cumpridas obrigações contratuais — entre elas, a realização de trabalhos voluntários.
Centenas de alunos do grupo em todo o País denunciaram e processaram a Uniesp alegando que, embora tenham cumprido todos os itens, tiveram o pagamento da dívida negado por inadimplência contratual e se tornaram devedores do Fies.
O advogado Carlos Fassina, ex-professor da Fanp, representa cinco estudantes de Nova Esperança em processos com a mesma acusação, e diz conhecer outra “meia dúzia” de casos em que estudantes sofreram calote, mas optaram por não entrar na Justiça.
“Muitos alunos se matricularam por causa do programa”, conta. “Só que, poucos dias antes do vencimento da primeira parcela, que seria para a faculdade pagar, a Uniesp inventou inadimplências contratuais”, diz.
“Os alunos não estavam preparados para pagar o Fies. Muitos estão subempregados ou desempregados, não têm condições. Alguns desistiram e estão deixando rolar. Outros vão tentar renegociar”, conta Fassina.
Segundo o advogado, a Uniesp também tinha a prática de cobrar valores mais altos quando a fonte de financiamento era o Fies. Ele sustenta que a mensalidade de Administração com ingresso em 2013 chegava a custar R$ 336 fora do programa. O valor cobrado do aluno com contrato com o Fies, no entanto, foi de R$ 1.194,72. O resultado é uma dívida de mais de R$ 57 mil, no caso de dois egressos de Administração da Fanp ouvidos pela FOLHA. “Da minha turma, vários tiveram esse problema”, disse Tainara Gazola, 24, uma das ex-alunas que procuraram a Justiça.
“Eles iludiram os alunos na hora da matrícula. Foi assim que a maioria da minha turma — talvez 90% — entrou nesse programa”, estima outro ex-aluno. Eles dizem ter provas de que cumpriram todos os itens do contrato.
A FOLHA questionou a Uniesp sobre o número de contratos do programa em que não houve o pagamento do Fies por inadimplência contratual, mas não foi atendida. O grupo também não informou quantos contratos da Fanp decorreram da transferência de outras unidades adquiridas na região — caso da Faculdade Unissa, de Sarandi, que foi desativada e teve alunos transferidos para Nova Esperança em 2015. A Uniesp também adquiriu faculdades em Curitiba, Ibiporã, Santo Antônio da Platina e Umuarama. A instituição não se posicionou sobre as acusações dos alunos.
Além das denúncias relacionadas ao Uniesp Paga, o grupo foi investigado por suspeita de fraudes no Fies pelo Ministério Público Federal e foi proibido pelo MEC (Ministério da Educação) de abrir novos cursos e adquirir novas faculdades.