A EXIGÊNCIA DE CONTRAPARTIDA AO SUS PARA OFERTA DE CURSOS DE MEDICINA
No último dia 16 de agosto foi publicada a Portaria Normativa nº 16/2014, a qual “estabelece os parâmetros para a contrapartida a ser oferecida ao Sistema Único de Saúde - SUS para implantação e funcionamento de cursos de graduação em Medicina, por instituição de educação superior privada”
De início, chama a atenção a exigência expressa de oferecimento de contrapartida, por parte da instituição de educação superior, de à estrutura de serviços, ações e programas do SUS, nos termos do artigo 1º da referida portaria:
“Art. 1º A habilitação para autorização de funcionamento de curso de graduação em Medicina será precedida de chamamento público e deverá observar, necessariamente, o oferecimento pela instituição de educação superior privada de contrapartida à estrutura de serviços, ações e programas de saúde do Sistema Único de Saúde - SUS do município e/ou na região de saúde do curso.”
Vale dizer, a instituição deverá “adquirir” o direito de ofertar o curso de Medicina, através de aporte de contrapartida obrigatória ao SUS e, mais do que isso, não caberá à instituição definir que tipo de contrapartida pretende oferecer, deverá fazê-lo nos termos do artigo 2º da referida norma, que estabelece
“Art. 2º A contrapartida à estrutura de serviços, ações e programas de saúde necessários para a implantação e para o funcionamento do curso de graduação em Medicina contemplará as seguintes modalidades:
I - formação para os profissionais da rede de atenção à saúde, nos termos do art. 35 da Resolução CNE/CES nº 03, de 20 de junho de 2014;
II - construção e/ou reforma da estrutura dos serviços de saúde;
III - aquisição de equipamentos para a rede de atenção à saúde; e
IV - pagamento de bolsas de Residência Médica em Programas de Medicina de Família e Comunidade e, no mínimo, dois outros das áreas prioritárias (Clínica Médica, Pediatria, Cirurgia Geral, Ginecologia e Obstetrícia).”
Venho tratando, há algumas edições desta coluna, do descabimento da formulação de exigências sem o devido fundamento legal, como exige expressamente o inciso inciso II do artigo 5º da Constituição Federal, que dispõe:
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
...
II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;”.
As exigências para a atuação da livre iniciativa na educação superior, por seu turno, estão claramente elencadas no artigo 209 da Constituição Federal:
“Art. 209. O ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as seguintes condições:
I - cumprimento das normas gerais da educação nacional;
II - autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público.”
Complementando a determinação constitucional, o artigo 7º da LDB ampliou as exigências para a atuação da livre iniciativa na área educacional, dispondo:
“Art. 7º O ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as seguintes condições:
I - cumprimento das normas gerais da educação nacional e do respectivo sistema de ensino;
II - autorização de funcionamento e avaliação de qualidade pelo Poder Público;
III - capacidade de autofinanciamento, ressalvado o previsto no art. 213 da Constituição Federal.”
Para que nos atenhamos, exclusivamente, na análise da exigência de contrapartida para que seja obtida autorização de funcionamento de curso de Medicina, aos aspectos legais, vejo-me obrigado a apontar apenas dois, entre diversos aspectos, que apontam para o descabimento deste “requisito”.
O primeiro, é mais óbvio, é a aplicação do princípio da legalidade, em sua essência, segundo o qual a lei é a única fonte legítima para impor obrigações ao administrado.
No caso em tela, inexiste, nos critérios legalmente impostos para a atuação da livre iniciativa na seara da educação superior, como apontam os acima transcritos dispositivos da Constituição Federal e da LDB, previsão para exigência de qualquer tipo de contrapartida como requisito para credenciamento de instituição de ensino superior ou para autorização de funcionamento de cursos.
Como se essa constatação não fosse suficiente, convém lembrar que, a teor do disposto no artigo 196 da Constituição Federal, a saúde é “direito de todos e dever do Estado”.
A própria Carta Magna de 1988, logo adiante, em seu artigo 198, estabelece as diretrizes para organização e funcionamento do sistema único de saúde – SUS, nos seguintes termos:
“Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:
I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo;
II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;
III - participação da comunidade.
§ 1º. O sistema único de saúde será financiado, nos termos do art. 195, com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes.
§ 2º A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios aplicarão, anualmente, em ações e serviços públicos de saúde recursos mínimos derivados da aplicação de percentuais calculados sobre:
I - no caso da União, na forma definida nos termos da lei complementar prevista no § 3º;
II - no caso dos Estados e do Distrito Federal, o produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 155 e dos recursos de que tratam os arts. 157 e 159, inciso I, alínea a, e inciso II, deduzidas as parcelas que forem transferidas aos respectivos Municípios;
III - no caso dos Municípios e do Distrito Federal, o produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 156 e dos recursos de que tratam os arts. 158 e 159, inciso I, alínea b e § 3º.”
A obrigação constitucional de custeio do Sistema Único de Saúde, portanto, está direcionada à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, sendo certo que o cidadão e as pessoas jurídicas de direito privado já são, naturalmente, compelidos a participar desse custeio, através do pagamento dos tributos, impiedosamente lançados pelo Poder Público sobre seus ombros.
Exigir das instituições particulares de ensino superior a oferta de contrapartida ao SUS como condição para que possam pleitear autorização de funcionamento para cursos de Medicina, além de representar exigência sem o devido fundamento na lei, configura, ainda, flagrante contradição, porquanto a expressão “contrapartida” faz supor a existência de uma “partida”, ou seja, de algo ofertado em troca, o que, convenhamos, não se aplica ao caso em comento...
O exercício, pelo administrado, de um direito constitucionalmente assegurado, não pode ser objeto de exigência de nenhum tipo de “contrapartida” pelo Poder Público, porquanto direitos não são comprados, mas sim impostos pela norma legal, devendo ser exigidos pelo cidadão sem ceder a exigências descabidas formuladas sem o devido fundamento em lei.
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Qualquer crítica, dúvida ou correções, por favor, entre em contato com a Coluna Educação Superior Comentada, por Gustavo Fagundes, que também está à disposição para sugestão de temas a serem tratados nas próximas edições.