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O Enem vai mudar

16/11/2018 | Por: Veja | 4178
Foto: Cristiano Mariz/Veja

Doutora em ciências, fundadora e ex-professora da Faculdade de Educação da Unicamp, a paulista Maria Inês Fini, de 70 anos, é também a “mãe do Enem”. Nos vinte anos de aplicação do Exame Nacional do Ensino Médio, que abre as portas para o ensino superior, ela participou da idealização e coordenação de oito provas, três delas como presidente do órgão responsável, o Inep, ligado ao Ministério da Educação. Com esse extenso currículo, Maria Inês era um nome pouco conhecido do grande público até o novo presidente ser eleito e ela se ver no olho do furacão: foi criticada por Jair Bolsonaro por “incluir ideologia e politicagem” no teste. “É preciso mudar”, bradou ele, demolindo as chances de ela assumir o MEC, como chegou a ser cogitado. Mudança é exatamente o que Maria Inês tem em mente para o Enem, mas sem a interferência indevida do governo. Nesta entrevista a VEJA em seu gabinete, em Brasília, ela adianta pontos de um projeto que deixará para o exame de 2020 e analisa o contexto que abriu caminho para os ataques de que foi alvo.

Já é público que o Enem vai mudar, mas pais e alunos estão ansiosos para saber como. O que a senhora pode adiantar sobre a nova prova? Primeiro, a carga sobre o aluno vai diminuir porque a filosofia da prova será outra. O Enem de hoje é bem elaborado, mas essencialmente conteudista, fincado em um modelo enciclopédico de escola. Os estudantes precisam saber tudo de todas as áreas com profundidade, ainda que um vá seguir a carreira de médico e outro opte por sociologia ou economia. No novo exame, haverá uma primeira etapa igual para todos, só que ela não exigirá um mergulho tão repleto em detalhes, nomes e decorebas. Testará, isto sim, a capacidade do aluno de combinar vários conhecimentos para chegar a uma resposta. Que não se confunda isso com superficialidade: a prova será interdisciplinar porque é assim que o mundo caminha.

Só para ficar claro, não haverá mais prova específica de química ou física? Com essa divisão por áreas, não. Mas química e física, assim como história, geografia, português, tudo será cobrado em questões que englobem conceitos presentes nessas disciplinas.

Como garantir que o novo Enem não ficará mais raso? Ele cobrará alta capacidade de raciocínio: em vez de uma questão de física para avaliar o conhecimento de cinética, por exemplo, a ideia é perguntar ao aluno como esse capítulo da física pode ajudar a resolver problemas ambientais. E, adianto aqui, o desenho do exame que deixarei para a próxima gestão terá ainda uma segunda etapa, esta sim bem mais específica. Quem quiser cursar engenharia fará apenas a prova de ciências da natureza; quem mirar história ou geografia será avaliado nas ciências humanas. Atualmente são 180 questões. Planejo enxugar para pouco mais da metade disso. O plano é que entre em vigor em 2020.

A troca de governo não representa um risco para esse projeto? O presidente eleito e seu ministro da Educação podem pensar de maneira diferente, claro, mas esse novo Enem é fruto de um debate maior, sobre o propósito da escola e como torná-la mais atraente e moderna, que vem se desenrolando há duas décadas entre educadores, instituições e a sociedade de modo geral. Ele é reflexo da nova base nacional comum curricular e pertence ao mesmo pacote de mudanças do ensino médio, que será reformado para ficar mais flexível e adaptado aos interesses de cada aluno. Na semana passada, foram aprovadas diretrizes que já preveem caminhos distintos para o jovem dentro do sistema educacional. A reforma deve ser aprovada até o fim do ano, se tudo der certo. Minha expectativa é que o novo Enem seja referendado em seguida.

O último Enem foi bombardeado por críticas, inclusive do presidente eleito Jair Bolsonaro. As mudanças que a senhora sinaliza têm alguma relação com isso? De jeito nenhum. Elas estão sendo pensadas há tempos, justamente para que a prova seja menos massacrante e converse com um ensino médio mais voltado para o século XXI — uma era em que capacidades so­cioemo­cionais, como tolerância, compreensão sobre a diversidade e o trabalho em equipe, precisam ser mais do que nunca desenvolvidas.

Bolsonaro afirmou que vai querer ler todo Enem antes de ser aplicado. É uma tradição presidencial? Até onde eu sei, nunca nenhum presidente, nem mesmo ministro, manifestou esse desejo. As mudanças em curso — o novo ensino médio, a base curricular — darão uma lufada de modernidade às escolas. Os ajustes passam pelo Conselho Nacional de Educação, um órgão respeitado, no qual nunca se ouviu falar da intervenção de um presidente em decisão alguma. Espero que o rito seja mantido.

A senhora vê algum mérito nas críticas ao último Enem? Honestamente, nenhum. Acho que as críticas são resultado de uma leitura ora superficial, ora preconceituosa da prova. Elas tratam o jovem como se ele precisasse ser mantido em uma redoma e subestimam sua capacidade de discernimento. Vejo a agressividade dessas reações como mais uma manifestação do clima de torcida de futebol que infelizmente se instalou no país. Parece que a campanha eleitoral não terminou.

Uma das questões que geraram mais polêmica neste Enem trazia no enunciado o pajubá, dialeto LGBT. Muita gente se queixou de que era uma referência dispensável. Isso a fez refletir? Refleti e cheguei à mesma conclusão de antes, quando eu mesma aprovei a questão: não tem absolutamente nada de errado nela. O objetivo da pergunta era avaliar se o aluno conhecia a definição de dialeto. Poderia ter citado outro exemplo, claro, mas por que não este? Por que, afinal, soou tão ofensivo? Não ouvi nenhum argumento racional que me fizesse mudar de ideia sobre o tema.

Muita gente se queixou do fato de Eduardo Galeano, escritor uruguaio identificado com o pensamento de esquerda, ter aparecido em duas questões. Não seria o caso de variar a fonte? Não concordo. As duas referências faziam sentido e por isso estavam lá, bem como citações a outros tantos autores, como Graciliano Ramos, Clarice Lispector e Guimarães Rosa. Acho que o Enem acabou virando uma oportunidade para certas pessoas buscarem estrelismo na mídia. E o tiroteio não foi dirigido apenas contra a prova, não. Eu fui pessoalmente muito agredida.

O historiador Marco Antonio Villa gravou um vídeo chamando a senhora de “a tirana do Inep”. Chegou a conversar com ele sobre isso? Não. Acho que o Villa lançou pedras tendo como base unicamente seu conjunto próprio de referências, como se não existissem outras maneiras de olhar para o mundo.

O filósofo Olavo de Carvalho, cuja obra é elogiada por Bolsonaro, disse que a senhora não tem estatura para estar à frente de um órgão como o Inep. Também silenciou sobre isso? O que dizer? Olavo foi desrespeitoso, calunioso e tem uma agenda própria para a educação.

A senhora chegou a ser cotada para assumir o Ministério da Educação, certo? Eu vi a notícia circular, mas ninguém ligado ao presidente eleito jamais me telefonou. Apesar dos boa­tos, certas pessoas falaram que eu tinha aprovado o Enem desse jeito justamente para provocar Bolsonaro. E olhe que a prova estava pronta desde maio, muito antes da eleição.

Até o ministro da Educação, Ros­sieli Soares, criticou o exame. Por quê? Isso eu prefiro não comentar.

Qual é sua posição sobre o movimento Escola sem Partido, que influenciou um projeto de lei em trâmite na Câmara dos Deputados prevendo medidas para coibir a “doutrinação” em sala de aula? A iniciativa parte de uma preocupação legítima, mas resvala para um radicalismo perigoso que pode substituir o que o movimento alega ser um pensamento único de esquerda por um pensamento único de direita — termos, aliás, já muito desgastados. O remédio que o Escola sem Partido propõe, sugerindo até enquadrar o professor doutrinador na Lei de Abuso de Autoridade, pode ser de dosagem tão alta que vire veneno. Daí já surgiu a ideia estapafúrdia de o aluno gravar as aulas. E prender o professor, que coisa é essa? O projeto em trâmite, do modo como está posto, traz embutido o risco de controle do pensamento. E o objetivo da educação deve ser exatamente o oposto: estimular o livre pensar.

O proselitismo é um problema essencial da educação brasileira? Ele existe, mas está longe de ser a maior questão a ser enfrentada no Brasil, país onde 93% dos estudantes se formam na escola sem conhecimento adequado de matemática e o preparo dos professores ainda tem muito, muito mesmo que melhorar. Do jeito que o assunto está sendo tratado, meu medo é que essa discussão acabe se transformando em um problema gigante. Agora, ela precisa ser encarada. A escola existe para melhorar a compreensão que crianças e adolescentes têm do mundo. Para isso, faz uso do saber acumulado ao longo dos séculos nos escaninhos das ciências, das artes e da filosofia. O primado da escola formal é o conhecimento — e ele deve ser respeitado em sua forma mais ampla. O aluno tem o direito de interagir com a diversidade de ideias.

As teses do educador Paulo Freire (1921-1997) vêm sendo fuziladas. O presidente eleito Bolsonaro falou em usar um lança-chamas para incinerar sua influência no ensino. O que a senhora pensa disso? Paulo Freire trouxe a ideia de que um adulto seria alfabetizado de forma mais eficiente se fossem levados em consideração a cultura e o contexto das camadas excluídas da população. E ele foi efetivo, marcou época, fez história. Muita gente que o demoniza não sabe o que realizou e usa argumentos rasos para derrubá-lo: como essa turma pode achar que educar usando as palavras do mundo ao qual uma pessoa pertence, como Freire pregava, será a semente de uma revolução? Tenho medo dessa ignorância ativa e dinâmica. A educação brasileira não tem tempo a perder com isso.


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PORTARIA MEC Nº 807, DE 18 DE JUNHO DE 2010

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