As graduações a distância dos cursos de farmácia, medicina veterinária e arquitetura foram aprovadas pelo Ministério da Educação, mas isso não garante que os estudantes dessas modalidades poderão atuar na profissão.
Isso porque os conselhos federais dessas áreas decidiram no início do ano barrar o registro de profissionais formados remotamente. O argumento é que os cursos não cumprem requisitos básicos.
Para advogados e instituições de ensino, entretanto, impedir o registro é uma medida inconstitucional. Além disso, a legislação brasileira de ensino não diferencia cursos presenciais ou remotos.
“Eu e meus colegas sofremos muito por causa dessa decisão do conselho. Alguns até acabaram desistindo”, afirma Janaina Soares, 42, que estuda arquitetura na Unopar (Universidade Norte do Paraná).
Com previsão para se formar em 2022, a aluna não pretende abandonar a faculdade. Em resposta à posição do conselho, Janaina criou uma conta no Instagram (@arquitetura.ead.sim) para retratar o dia a dia de estudantes dessa modalidade.
“Queria mostrar que talvez a gente estude até mais que um aluno presencial”, diz ela, que é professora de dança e mora em Rio das Ostras (RJ).
Se não fosse pela EaD, Janaina afirma que seria impossível realizar o sonho de fazer arquitetura, já que a cidade onde vive não tem a graduação presencial. Sua rotina de trabalho também não permitiria.
A aluna vai ao polo, em média, duas vezes por semana para fazer exercícios práticos com a supervisão de um tutor. “Temos acompanhamento e todo o aparato necessário.”
Na opinião dela, uma saída para garantir a qualidade do profissional seria aplicar uma prova de proficiência, como a realizada pela OAB (Ordem dos Advogados do Brasil).
A aluna Amanda Nazário, 32, que cursa farmácia na Uninassau, em Maceió (AL), concorda com a ideia também para a área da saúde. Como Janaina, ela tem uma página no Instagram (@diarioeadfarm) para mostrar sua rotina de estudos. “O preconceito existe, muitas vezes, por desinformação”, afirma.
A estudante diz ter a mesma carga horária prática que os alunos da graduação presencial da instituição —inclusive 800 horas de estágio, a serem cumpridas no sétimo, oitavo e nono períodos.
De acordo com a farmacêutica Zilamar Costa, do CFF (Conselho Federal de Farmácia), atividades práticas semestrais são insuficientes para uma formação adequada. Ela também ressalta que a graduação deve ter estágio desde o início das aulas.
A primeira leva de alunos de farmácia pela modalidade a distância deve se formar no final de 2020. O CFF receia que esses profissionais saiam mal preparados e coloquem a vida dos pacientes em risco. “O dano será muito maior se a gente não alertar a sociedade agora”, diz Costa.
O órgão defende que até 20% do conteúdo possa ser ministrado online —valor máximo permitido para que uma graduação na área da saúde seja considerada presencial.
“A EaD é, por si só, incompatível com a área da saúde, que tem como característica o contato direto com o ser humano”, afirma Costa. E aponta como agravante a expansão desenfreada da modalidade sem a devida regulação.
Em 2017, um decreto do então presidente Michel Temer (MDB) facilitou a abertura de polos. Em fevereiro daquele ano, as graduações EaD na área da saúde tinham 274.603 vagas autorizadas pelo MEC. Em junho de 2019, o número passou para 1.083.504.
De acordo com a enfermeira Ivone Martini, coordenadora do Fórum dos Conselhos Federais da Área da Saúde (FCFAS), os 14 órgãos que compõem a entidade debatem a possibilidade de negar o registro a formados pela modalidade a distância.
Além do conselho de farmácia, tomaram essa decisão o de medicina veterinária e o de odontologia —que agiu de forma preventiva, já que não há cursos remotos na área.
“Quando o profissional cometer um erro grave, o conselho vai poder responsabilizar quem deu o diploma a alguém que não sabe trabalhar?”, questiona Martini.
Para o CAU/BR (Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil), formar arquitetos a distância oferece um risco tão grave à vida quanto formar profissionais da saúde.
“Nossa leitura é que não é possível conceder uma autorização, que tem implicações jurídicas importantes, a alguém com uma formação tão frágil”, diz Juliano Ximenes Ponte, membro do órgão.
Segundo o arquiteto, o conselho não está interferindo nos critérios de formação, que são atribuição do MEC, mas exercendo o seu papel de regular o exercício da profissão.
Ele também afirma que, por enquanto, o CAU não estuda aplicar um exame de proficiência como requisito para obtenção do registro. Já o CFF diz que avalia a possibilidade.
Para Jorge Boucinhas Filho, diretor da Escola Superior de Advocacia, barrar o registro a formados por EaD é inconstitucional, já que os alunos estão cumprindo a exigência legal de ter um diploma válido.
Entidades que representam as universidades privadas entraram com processos na Justiça contra a decisão dos conselhos. “Ao tentar usurpar competência exclusiva do Ministério da Educação, os conselhos miram unicamente na reserva de mercado”, diz Sólon Caldas, diretor-executivo das ABMES (Associação das Mantenedoras de Instituições do Ensino Superior).
Em nota, o MEC cita um parecer do Conselho Nacional de Educação, emitido em 2016, segundo o qual a legislação educacional não faz distinção entre os cursos superiores na modalidade presencial ou a distância.
“Portanto, os órgãos de fiscalização profissional não podem adotar medidas e critérios que possam impedir a emissão do diploma ou exercício profissional de graduado em curso ofertado na modalidade a distância”, diz o parecer.