Educação Superior Comentada | A legitimidade da cobrança por cursos de pós-graduação lato sensu nas universidades públicas

Ano 5 - Nº 35 - 18 de outubro de 2017

Na edição desta semana, o consultor jurídico da ABMES, Gustavo Fagundes, comenta a modificação do entendimento judicial que passou a considerar como legítima a cobrança efetuada pelas universidades públicas por cursos de pós-graduação lato sensu

18/10/2017 | Por: Gustavo Fagundes | 7200

Durante muito tempo, foi absolutamente pacífico o entendimento de que as universidades públicas não poderiam efetuar a cobrança pela oferta dos cursos de pós-graduação lato sensu.

Esse entendimento, consoante de pacífica jurisprudência, tinha lastro nos preceitos contidos na Constituição Federal e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) sobre o tema.

Com efeito, o artigo 206 da Constituição Federal é absolutamente cristalino ao prever, em seu inciso IV, a gratuidade do ensino público nos estabelecimentos oficiais como um dos princípios basilares da educação no país:

“Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:

.....

IV - gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais;”.

Repetindo o texto constitucional, o artigo 3º da Lei nº 9.394/1996 (LDB), em seu inciso VI, reitera a gratuidade do ensino público nos estabelecimentos oficiais como princípio essencial da oferta do ensino:

“Art. 3º O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:

.....

VI - gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais;”.

A partir da análise desses dois dispositivos, reinava dominante o entendimento acerca da impossibilidade de cobrança de taxa de matrícula e de mensalidades pelas universidades públicas, independentemente do tipo ou modalidade de curso ofertado, inclusive no que diz respeito aos cursos de pós-graduação lato sensu.

Este entendimento, inclusive, restou consolidado por muitos anos, chegando a ensejar a edição da Súmula Vinculante n° 12, do Egrégio Supremo Tribunal Federal (STF), segundo a qual “a cobrança de taxa de matrícula nas universidades públicas viola o disposto no art. 206, IV, da Constituição Federal”.

Todavia, em abril de 2017, ao julgar o Recurso Extraordinário n° 597.854/GO, sob a relatoria do Ministro Edson Fachin, o STF modificou o entendimento até então consolidado.

O debate seguiu linha já adotada em algumas discussões levadas a efeito sobre o tema, nas quais surgia o entendimento de que os cursos de pós-graduação lato sensu eram essencialmente destinados à qualificação para o mercado de trabalho, não guardando, portanto, estreita relação com o desenvolvimento das atividades de manutenção e desenvolvimento do ensino.

Nesse sentido, relevante destacar trecho do voto do Relator, Ministro Édson Fachin:

“De fato, o regime constitucional de pós-graduação deve derivar das exigências constitucionais contidas no art. 207 da CRFB. É impossível afirmar, a partir de uma leitura estrita da Constituição, que as atividades de pós-graduação são abrangidas pelo conceito de manutenção e desenvolvimento do ensino, parâmetro constitucional para a destinação, com exclusividade, dos recursos públicos.

Para a solução do presente caso é preciso examinar, assim, se a instituição de cursos de pós-graduação implica, necessariamente, gratuidade. Cingir-se-á, aqui, como já dito, à especialização.

A tarefa de disciplinar quais características determinado curso assumirá compete ao legislador. Caso a atividade preponderante refira-se à manutenção e desenvolvimento do ensino, a gratuidade deverá ser observada, nos termos do art. 206, IV, da CRFB.

.....

Da Lei de Diretrizes e Bases é possível depreender, ainda, que os cursos de pós-graduação destinam-se à preparação para o exercício do magistério superior (arts. 64 e 66) e, por isso, são indispensáveis para a manutenção e desenvolvimento das instituições de ensino (art. 55).

É preciso observar, porém, que apenas os cursos de pós-graduação que se destinam à manutenção e desenvolvimento do ensino é que são financiados pelo poder público. Novamente é a Lei, em seus arts. 70 e 71, que fixa as regras para contabilizar essas despesas:”

Adiante, o Ministro Relator conclui seu voto, manifestando-se pela possibilidade de cobrança pela oferta de cursos de pós-graduação lato sensu pelas universidades públicas:

“Em suma, é preciso reconhecer que nem todas as atividades potencialmente desempenhadas pelas universidades referem-se exclusivamente ao ensino. A função desempenhada pelas universidades é muito mais ampla do que as formas pelas quais elas obtêm financiamento. Assim, o princípio da gratuidade não as obriga a perceber exclusivamente recursos públicos para atender sua missão institucional. Ele exige, porém, que, para todas as tarefas necessárias à plena inclusão social, missão do direito à educação, haja recursos públicos disponíveis para os estabelecimentos oficiais.

O termo utilizado pela Constituição é que essas são as tarefas de “manutenção e desenvolvimento do ensino”. Consequentemente, são a elas que se estende o princípio da gratuidade. Nada obstante, é possível às universidades, no âmbito de sua autonomia didático-científica, regulamentar, em harmonia com a legislação, as atividades destinadas preponderantemente à extensão universitária, sendo-lhes, nessa condição, possível a instituição de tarifa. Noutras palavras, a garantia constitucional da gratuidade de ensino não obsta a cobrança, por universidades públicas, de mensalidade em curso de especialização.

Sendo esse o fundamento único da impetração, incorreto o entendimento do Tribunal a quo que, sem observar a vinculação entre a atividade em face da qual se estabeleceu a tarifa, estende a ela a gratuidade.

Ante o exposto, circunscrevendo o debate no âmbito específico dos cursos de especialização, dou provimento ao recurso extraordinário, para denegar a segurança pleiteada.

          É como voto.

Proposta de tese: A garantia constitucional da gratuidade de ensino não obsta a cobrança, por universidades públicas, de mensalidade em curso de especialização.”

Com exceção do Ministro Marco Aurélio Mello e do ausente o Ministro Celso de Mello, todos os demais membros da suprema Corte acompanharam o voto proferido pelo Ministro Relator Édson Fachin, consolidando, assim, o entendimento adotado na tese vencedora, culminando com a edição do seguinte Acórdão:

“EMENTA: CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM REPERCUSSÃO GERAL. COBRANÇA DE MENSALIDADE EM CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU POR INSTITUIÇÃO PÚBLICA DE ENSINO. CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO. POSSIBILIDADE. OFENSA AO PRINCÍPIO DA GRATUIDADE DO ENSINO EM ESTABALECIMENTOS OFICIAIS. INOCORRÊNCIA.

1. A garantia constitucional da gratuidade de ensino não obsta a cobrança, por universidades públicas, de mensalidade em curso de especialização.

         2. Recurso extraordinário a que se dá provimento.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Sessão Plenária, sob a Presidência da Ministra Cármen Lúcia, na conformidade da ata de julgamento e das notas taquigráficas, preliminarmente, por maioria, vencidos os Ministros Marco Aurélio, Rosa Weber e Ricardo Lewandowski, em indeferir pedido de sustentação oral do advogado do amicus curiae Associação Nacional dos Pós-Graduandos - ANPG. Em seguida, o Tribunal, por maioria e nos termos do voto do Relator, apreciando o tema 535 da repercussão geral, deu provimento ao recurso para denegar a segurança pleiteada, e fixou a seguinte tese: "A garantia constitucional da gratuidade de ensino não obsta a cobrança por universidades públicas de mensalidade em cursos de especialização", vencido o Ministro Marco Aurélio.

Brasília, 26 de abril de 2017.

Ministro EDSON FACHIN - Relator” (RE n° 597.854/GO).

Cumpre registrar que, tendo ainda o STF decidido pela repercussão geral do tema sob análise, o entendimento acerca da possibilidade de cobrança para oferta de cursos de pós-graduação lato sensu pelas universidades públicas passou a ser adotado pelos demais tribunais, como demonstram os recentes arestos, oriundos do Tribunal Regional Federal da 1ª Região:

“EMENTA

ADMINISTRATIVO. CONSTITUCIONAL. MANDADO DE SEGURANÇA. ENSINO SUPERIOR. CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU. UNIVERSIDADE PÚBLICA. COBRANÇA DE MENSALIDADE. POSSIBILIDADE. RECURSO EM GRAU DE REPERCUSÃO GERAL DO STF (RE 597.854/GO). SEGURANÇA DENEGADA.

I – A controvérsia instaurada nos presentes autos relaciona-se à possibilidade ou não de cobrança de mensalidades no curso de pós-graduação lato sensu em Universidade Federal.

II – O entendimento pacificado no âmbito desta Corte Regional desde 2012 era o de que "a cobrança de taxa de matrícula ou mensalidade em qualquer curso ministrado em estabelecimento oficial de ensino público viola o disposto no art. 206, IV, da Constituição Federal".

III – O Supremo Tribunal Federal, em abril de 2017, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 597.854, Rel. Ministro Edson Fachin, em regime de repercussão geral, decidiu por maioria que as universidades públicas podem cobrar mensalidade por cursos de pós-graduação lato sensu, sob o argumento de que “A garantia constitucional da gratuidade de ensino não obsta a cobrança por universidades públicas de mensalidade em cursos de especialização".

IV – Apelação e remessa oficial providas. Segurança denegada.” (Apelação/Reexame Necessário n° 0011664-14.2015.4.01.3500/GO, 5ª Turma do TRF da 1ª Região, Rel. Desembargador Federal Souza Prudente, v.u., e-DJF1, n° 161, 01.09.2017, pág. 258).

 “EMENTA

ADMINISTRATIVO. CONSTITUCIONAL. MANDADO DE SEGURANÇA. ENSINO SUPERIOR. CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU. UNIVERSIDADE PÚBLICA. COBRANÇA DE MENSALIDADE. POSSIBILIDADE. RECURSO EM GRAU DE REPERCUSSÃO GERAL DO STF (RE 597.854/GO). SEGURANÇA DENEGADA.

I – A controvérsia instaurada nos presentes autos relaciona-se à possibilidade ou não de cobrança de mensalidades no curso de pós-graduação lato sensu em Universidade Federal.

II – O entendimento pacificado no âmbito desta Corte Regional desde 2012 era o de que "a cobrança de taxa de matrícula ou mensalidade em qualquer curso ministrado em estabelecimento oficial de ensino público viola o disposto no art. 206, IV, da Constituição Federal".

III – O Supremo Tribunal Federal, em abril de 2017, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 597.854, Rel. Ministro Edson Fachin, em regime de repercussão geral (Tema nº 535), decidiu, por maioria, que as universidades públicas podem cobrar pelos cursos de pós-graduação lato sensu que oferecem, haja vista que a “garantia constitucional da gratuidade de ensino não obsta a cobrança por universidades públicas de mensalidade em cursos de especialização".

IV – Apelação e remessa oficial providas. Segurança denegada.” (Apelação/Reexame Necessário n° 0016395-53.2015.4.01.3500/GO, 5ª Turma do TRF da 1ª Região, Rel. Desembargador Federal Souza Prudente, v.u., eDJF1, n° 178, 27.09.2017, pág. 94).

Desse modo, a partir da modificação do entendimento anteriormente consolidado no âmbito do Supremo Tribunal Federal, o Poder Judiciário passou a entender que não há impedimento legal para que as instituições públicas promovam a cobrança pela oferta dos cursos de pós-graduação lato sensu.

Qualquer crítica, dúvida ou correções, por favor, entre em contato com a Coluna Educação Superior Comentada, por Gustavo Fagundes, que também está à disposição para sugestão de temas a serem tratados nas próximas edições.

A ABMES também oferece atendimento presencial nas áreas jurídica e acadêmica. Para agendar um horário, envie e-mail para faleconosco@abmes.org.br.


Conteúdo Relacionado

Vídeos

Mudanças na oferta dos cursos de pós-graduação lato sensu

Confira algumas das alterações introduzidas pela Resolução nº 1, de 6 de abril de 2018, que estabeleceu diretrizes e normas para a oferta dos cursos de pós-graduação lato sensu denominados cursos de especialização, no âmbito do Sistema Federal de Educação Superior.

Seminário ABMES | Decreto 9.235 e o novo marco regulatório da educação superior (Debate)

Debate ocorrido no Seminário ABMES | Decreto 9.235 e o novo marco regulatório da educação superior

Decreto 9.235: principais pontos

Publicado em 15 de dezembro de 2017, o Decreto 9.235 trouxe as novas regras com relação à regulação, à supervisão e à avaliação das instituições de educação superior e dos cursos superiores de graduação e de pós-graduação do sistema federal de ensino

Legislação

RESOLUÇÃO CNE/CES Nº 1, DE 06 DE ABRIL DE 2018

Estabelece diretrizes e normas para a oferta dos cursos de pós-graduação lato sensu denominados cursos de especialização, no âmbito do Sistema Federal de Educação Superior, conforme prevê o Art. 39, § 3º, da Lei nº 9.394/1996, e dá outras providências.


DESPACHO S/N, DE 05 DE ABRIL DE 2018

Homologa o Parecer CNE/CES nº 146/2018 que estabeleceu diretrizes e normas para a oferta dos cursos de pós-graduação lato sensu, no âmbito do Sistema Federal de Educação Superior, reexaminando o Parecer CNE/CES nº 245/2016.


PORTARIA MEC Nº 321, DE 05 DE ABRIL DE 2018

Dispõe sobre a avaliação da pós-graduação stricto sensu.


LEI Nº 9.394, DE 20 DE DEZEMBRO DE 1996

Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional


Notícias

Capes aprimora instrumento normativo para interposição de recursos

De acordo com o documento, os recursos das decisões do CTC-ES deverão ser protocolados por meio de ofício dirigido ao presidente da Capes

Educação aprova financiamento de cursos de pós-graduação pelo ProUni

Atualmente, o programa beneficia apenas estudantes de cursos de graduação e de cursos sequenciais de formação específica

ABMES participa de audiência pública na Câmara dos Deputados sobre cobrança de universidades federais

Atividade reuniu representantes de diversos setores e teve como foco principal o debate sobre pagamento por parte de estudantes de alta renda

Edital seleciona projetos conjuntos de pesquisa brasileiros e portugueses

O Programa visa fomentar a mobilidade de docentes e de estudantes de pós-graduação no nível de doutorado sanduíche e pós-doutorado

Coluna

Educação Superior Comentada | As normas que regulamentam a oferta dos cursos de pós-graduação lato sensu

Ano 1 . Nº 27 . De 3 a 9 de setembro de 2013

A Coluna do Gustavo desta semana analisa as normas que regulamentam a oferta dos cursos de pós-graduação Lato Sensu

Educação Superior Comentada | Cadastro dos cursos de pós-graduação lato sensu no sistema e-MEC

Ano 2 • Nº 9 • De 27 de maio a 02 de junho de 2014

A Coluna Educação Superior Comentada desta semana trata do cadastro dos cursos de pós-graduação lato sensu no sistema e-MEC.

Educação Superior Comentada | O Ressurgimento do Credenciamento Especial para Oferta de Pós-Graduação Lato Sensu

Ano 3 • Nº 37 • 28 de outubro de 2015

Nesta semana, o consultor jurídico da ABMES, Gustavo Fagundes, aborda o ressurgimento do credenciamento especial para oferta de pós-graduação lato sensu

Educação Superior Comentada | A revogação da Portaria Normativa n° 22/2017

Na edição desta semana, o consultor jurídico da ABMES, Gustavo Fagundes, analisa a revogação da Portaria Normativa n° 22/2017, que dispõe sobre os procedimentos de supervisão e monitoramento de instituições de educação superior e de cursos superiores de graduação e de pós-graduação lato sensu, nas modalidades presencial e a distância

Educação Superior Comentada | A nova regulamentação para oferta dos cursos de pós-graduação lato sensu

Na edição desta semana, o consultor jurídico da ABMES, Gustavo Fagundes, analisa a Resolução CES/CNE n° 1/2018, que estabelece diretrizes e normas para oferta dos cursos de pós-graduação lato sensu denominados cursos de especialização, estabelecendo, com isso, o novo regramento aplicável a estes cursos no âmbito do sistema federal de ensino