Inicialmente, cumpre registrar que, a partir da edição da Lei n° 12.871/2013, que instituiu o Programa Mais Médicos, a autorização para funcionamento de cursos de Medicina somente é possível com a realização de chamamento público, conforme claramente previsto em seu artigo 3º:
“Art. 3º A autorização para o funcionamento de curso de graduação em Medicina, por instituição de educação superior privada, será precedida de chamamento público, e caberá ao Ministro de Estado da Educação dispor sobre:
I - pré-seleção dos Municípios para a autorização de funcionamento de cursos de Medicina, ouvido o Ministério da Saúde;
II - procedimentos para a celebração do termo de adesão ao chamamento público pelos gestores locais do SUS;
III - critérios para a autorização de funcionamento de instituição de educação superior privada especializada em cursos na área de saúde;
IV - critérios do edital de seleção de propostas para obtenção de autorização de funcionamento de curso de Medicina; e
V - periodicidade e metodologia dos procedimentos avaliatórios necessários ao acompanhamento e monitoramento da execução da proposta vencedora do chamamento público.
§ 1º Na pré-seleção dos Municípios de que trata o inciso I do caput deste artigo, deverão ser consideradas, no âmbito da região de saúde:
I - a relevância e a necessidade social da oferta de curso de Medicina; e
II - a existência, nas redes de atenção à saúde do SUS, de equipamentos públicos adequados e suficientes para a oferta do curso de Medicina, incluindo, no mínimo, os seguintes serviços, ações e programas:
a) atenção básica;
b) urgência e emergência;
c) atenção psicossocial;
d) atenção ambulatorial especializada e hospitalar; e
e) vigilância em saúde.
§ 2º Por meio do termo de adesão de que trata o inciso II do caput deste artigo, o gestor local do SUS compromete-se a oferecer à instituição de educação superior vencedora do chamamento público, mediante contrapartida a ser disciplinada por ato do Ministro de Estado da Educação, a estrutura de serviços, ações e programas de saúde necessários para a implantação e para o funcionamento do curso de graduação em Medicina.
§ 3º O edital previsto no inciso IV do caput deste artigo observará, no que couber, a legislação sobre licitações e contratos administrativos e exigirá garantia de proposta do participante e multa por inexecução total ou parcial do contrato, conforme previsto, respectivamente, no art. 56 e no inciso II do caput do art. 87 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993.
§ 4º O disposto neste artigo não se aplica aos pedidos de autorização para funcionamento de curso de Medicina protocolados no Ministério da Educação até a data de publicação desta Lei.
§ 5º O Ministério da Educação, sem prejuízo do atendimento aos requisitos previstos no inciso II do § 1º deste artigo, disporá sobre o processo de autorização de cursos de Medicina em unidades hospitalares que:
I - possuam certificação como hospitais de ensino;
II - possuam residência médica em no mínimo 10 (dez) especialidades; ou
III - mantenham processo permanente de avaliação e certificação da qualidade de seus serviços.
§ 6º O Ministério da Educação, conforme regulamentação própria, poderá aplicar o procedimento de chamamento público de que trata este artigo aos outros cursos de graduação na área de saúde.
§ 7º A autorização e a renovação de autorização para funcionamento de cursos de graduação em Medicina deverão considerar, sem prejuízo de outras exigências estabelecidas no Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes):
I - os seguintes critérios de qualidade:
a) exigência de infraestrutura adequada, incluindo bibliotecas, laboratórios, ambulatórios, salas de aula dotadas de recursos didático-pedagógicos e técnicos especializados, equipamentos especiais e de informática e outras instalações indispensáveis à formação dos estudantes de Medicina;
b) acesso a serviços de saúde, clínicas ou hospitais com as especialidades básicas indispensáveis à formação dos alunos;
c) possuir metas para corpo docente em regime de tempo integral e para corpo docente com titulação acadêmica de mestrado ou doutorado;
d) possuir corpo docente e técnico com capacidade para desenvolver pesquisa de boa qualidade, nas áreas curriculares em questão, aferida por publicações científicas;
II - a necessidade social do curso para a cidade e para a região em que se localiza, demonstrada por indicadores demográficos, sociais, econômicos e concernentes à oferta de serviços de saúde, incluindo dados relativos à:
a) relação número de habitantes por número de profissionais no Município em que é ministrado o curso e nos Municípios de seu entorno;
b) descrição da rede de cursos análogos de nível superior, públicos e privados, de serviços de saúde, ambulatoriais e hospitalares e de programas de residência em funcionamento na região;
c) inserção do curso em programa de extensão que atenda a população carente da cidade e da região em que a instituição se localiza.”
Em mais de uma ocasião, externamos o entendimento de que a adoção do chamamento público como única forma de obtenção de autorização de oferta de cursos de Medicina configura violação ao princípio constitucional da livre iniciativa, conforme insculpido no artigo 209 da Constituição Federal:
“Art. 209. O ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as seguintes condições:
I - cumprimento das normas gerais da educação nacional;
II - autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público.”
A garantia da atuação da livre iniciada na educação está reiterado no artigo 7° da Lei n° 9.394/1996 – LDB:
“Art. 7º O ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as seguintes condições:
I - cumprimento das normas gerais da educação nacional e do respectivo sistema de ensino;
II - autorização de funcionamento e avaliação de qualidade pelo Poder Público;
III - capacidade de autofinanciamento, ressalvado o previsto no art. 213 da Constituição Federal.”
Neste sentido, resta absolutamente cristalino o entendimento de que a atuação das instituições particulares de ensino não se configura como casos de concessão ou permissão do poder público, como já decidido de forma cristalina pelo Egrégio Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADIN n° 1.007-7 – Pernambuco:
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 1.007-7 PERNAMBUCO
RELATOR: MIN. EROS GRAU
REQUERENTE: CONFEDERACAO NACIONAL DOS ESTABELECIMENTOS DE ENSINO CONFENEN
ADVOGADO: LEUCIO LEMOS FILHO E OUTROS
REQUERIDO: GOVERNADOR DO ESTADO DE PERNAMBUCO
REQUERIDO: ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DE PERNAMBUCO
EMENTA
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI N. 10.989/93 DO ESTADO DE PERNAMBUCO. EDUCAÇÃO: SERVIÇO PÚBLICO NÃO PRIVATIVO. MENSALIDADES ESCOLARES. FIXAÇÃO DA DATA DE VENCIMENTO. MATÉRIA DE DIREITO CONTRATUAL. VÍCIO DE INICIATIVA.
1. Os serviços de educação, seja os prestados pelo Estado, seja os prestados por particulares, configuram serviço público não privativo, podendo ser desenvolvidos pelo setor privado independentemente de concessão, permissão ou autorização.
2. Nos termos do artigo 22, inciso I, da Constituição do Brasil, compete à União legislar sobre direito civil.
3. Pedido de declaração de inconstitucionalidade julgado procedente.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Sessão Plenária, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por maioria de votos, julgar procedente a ação e declarar a inconstitucionalidade da Lei n. 10.989, de 07 de dezembro de 1993, do Estado de Pernambuco, nos termos do voto do relator.”
O sistema de uso exclusivo de chamamento por edital para a oferta de cursos de Medicina, portanto, vulnera de forma flagrante o princípio constitucional da livre iniciativa.
Como se isso não bastasse, decidiu agora o Ministério da Educação, por força da Portaria n° 328/2018, suspender pelo prazo de 5 (cinco) anos a publicação de novos editais de chamamento público para autorização de novos cursos de Medicina, bem como o protocolo de pedidos de aumentos de vagas nestes cursos, exceto para aqueles abertos no âmbito dos editais em tramitação ou já concluídos, nos seguintes termos:
“Art. 1º Fica suspensa por cinco anos a publicação de editais de chamamento público para autorização de novos cursos de graduação em Medicina, nos termos do art. 3º da Lei nº 12.871, de 22 de outubro de 2013, e o protocolo de pedidos de aumento de vagas em cursos de graduação em Medicina ofertados por instituições de educação superior vinculadas ao sistema federal de ensino, de que trata o art. 40 do Decreto nº 9.235, de 15 de dezembro de 2017.
Parágrafo único. A suspensão do protocolo de pedidos de aumento de vagas de que trata o caput não se aplica aos cursos de Medicina autorizados no âmbito dos editais de chamamento público em tramitação ou concluídos, segundo o rito estabelecido no art. 3º da Lei nº 12.871, de 2013, e aos cursos de Medicina pactuados no âmbito da política de expansão das universidades federais, cujos pedidos de aumento de vagas poderão ser solicitados uma única vez e analisados de acordo com regras e calendário específicos, a serem definidos pelo Ministério da Educação - MEC.”
A portaria em comento, no parágrafo único de seu artigo 1º, trata de forma diferencia os cursos de Medicina autorizados antes da edição do Programa Mais Médicos, para os quais, registre-se, foram cumpridos todos os trâmites legais exigidos na ocasião.
Trata, portanto, de forma absolutamente discriminatória os cursos de Medicina, privilegiando aqueles abertos no âmbito dos editais de chamada pública com a possibilidade de apresentação de pedidos de aumento de vagas, ao mesmo tempo em que veda aos abertos anteriormente, com o cumprimento das exigências vigentes na ocasião da obtenção de seus atos autorizativos.
Com essa distinção, criam-se duas categorias de cursos de Medicina, embora todos os cursos em oferta no País, ao menos em tese, são ofertados de forma absolutamente regular: os que podem e os que não podem solicitar aumento de vagas.
Além dessa descabida distinção, chama a atenção a justificativa apontada para a suspensão imposta pela Portaria n° 328/2018, qual seja, a garantia da qualidade da oferta dos cursos de Medicina e, via de consequência, da formação médica.
Presenciamos, mais uma vez, o discurso da “garantia da qualidade” para cercear o direito à livre iniciativa, como se a criação, ainda que por prazo determinado, de uma reserva de mercado para os cursos já existentes, os quais, conforme entrelinhas da justificativa apresentada, não estariam ofertando a formação médica de acordo com os padrões de qualidade exigidos no âmbito do sistema federal de ensino, fosse solucionar o alegado problema de falta de qualidade.
Era o mesmo discurso, lembremos, que sustentou por alguns anos o malsinado fechamento de protocolo para pedidos de autorização de cursos de Direito.
Com efeito, o MEC possui diversas ferramentas para impor o pleno atendimento aos critérios de regularidade e qualidade na oferta de educação superior, especialmente aquelas trazidas pela Portaria n° 315/2017, que regulamenta os procedimentos de supervisão e monitoramento no âmbito do sistema federal de ensino, tema abordado em nossa coluna veiculada em 11 de abril do corrente ano.
Rigidez na condução dos procedimentos avaliativos, uso efetivo dos procedimentos de supervisão e monitoramento e, sobretudo, aplicação de sanções severas e efetivas àquelas instituições que descumprem as normas legais em vigor, certamente, teriam o condão de preservar, em regular funcionamento, apenas as instituições que ofertassem educação com efetiva e comprovada qualidade.
Simplesmente vedar, ainda que por prazo certo e determinado, a entrada de novos players no mercado, com a devida vênia dos gestores do MEC, não vai gerar a melhoria almejada na qualidade dos cursos de Medicina, pois a garantia de manutenção de seu “monopólio”, já trazida com a adoção do sistema de edital de chamamento público, no qual os municípios em que haja oferta desses cursos são automaticamente alijados do processo, e agora assegurada por cinco anos, deixará absolutamente à vontade os que já estão estabelecidos no mercado, agora hermeticamente fechado.
As medidas postas à disposição do MEC para assegurar a melhoria da qualidade dos cursos de Medicina e, registre-se, da educação superior de forma geral, podem certamente ser aplicadas a qualquer tempo, sem a necessidade de criação de reserva de mercado em qualquer área do conhecimento.
Basta vontade política e desejo firme de impor o efetivo cumprimento das normas da educação nacional para alcançar tão nobre objetivo.
Convém registrar que a portaria em comento também determinou a criação de Grupo de Trabalho com o objetivo de subsidiar a reorientação da formação médica nos cursos de Medicina e as ações regulatórias do MEC para novas autorizações, nos termos de seus artigos 2º usque 4º:
“Art. 2º Em função do disposto no art. 1º, fica instituído Grupo de Trabalho - GT, no âmbito do MEC, para subsidiar a reorientação da formação médica em cursos de graduação em Medicina.
Art. 3º O GT ficará vinculado ao Gabinete da Secretaria de Regulação e Supervisão da Educação Superior - SERES e será composto por representantes de cada um dos seguintes órgãos e entidades:
I - Secretaria de Regulação e Supervisão da Educação Superior do Ministério da Educação - SERES-MEC;
II - Secretaria de Educação Superior do Ministério da Educação - SESu-MEC;
III - Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira - Inep;
IV - Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares - Ebserh;
V - Conselho Nacional de Educação - CNE;
VI - Conselho Federal de Medicina - CFM;
VII - Associação Médica Brasileira - AMB; e
VIII - Associação Brasileira de Educação Médica - ABEM.
§ 1º Os representantes, titular e suplente, deverão ser indicados pelos dirigentes máximos dos respectivos órgãos e entes, no prazo de quinze dias, a contar da publicação desta Portaria.
§ 2º As atividades do GT serão iniciadas no prazo de trinta dias após a publicação desta Portaria.
§ 3º O GT reunir-se-á periodicamente, conforme cronograma a ser definido e divulgado pela SERES, que coordenará as atividades.
§ 4º A participação no GT não ensejará remuneração para os seus membros e os trabalhos nele desenvolvidos serão considerados prestação de relevante serviço público.
Art. 4º O GT deverá apresentar relatórios e estudos a fim de subsidiar a política de formação médica e as ações regulatórias do MEC para a autorização de novos cursos de Medicina, considerando aspectos de qualidade dos cursos de graduação em Medicina em funcionamento, de inserção regional quanto aos serviços de atendimento à saúde, de inclusão dos egressos e de condição de oferta.”
Outra questão que merece registro é que a suspensão imposta pela Portaria n° 318/2018 atinge somente as instituições particulares de educação superior, não sendo aplicada às instituições públicas, criando, com isso, mais uma diferenciação injustificada.
Com efeito, em relação aos sistemas de ensino estaduais e do Distrito Federal, o Ministério da Educação apenas determinou, por força da Portaria n° 329/2018, a observância à exigência veiculada pela Lei n° 12.817/2013, ou seja, que os processos de autorização de cursos de graduação em Medicina observem a sistemática de chamamento público para seleção de municípios e de propostas das instituições públicas, nos seguintes termos:
“Art. 1º Os sistemas de ensino dos Estados e do Distrito Federal deverão adotar os critérios definidos na Lei nº 12.871, de 22 de outubro de 2013, nos termos definidos pelo art. 46, § 5º, da Lei nº 9.394, de 1996, para a autorização e o funcionamento de cursos de graduação em Medicina.
Parágrafo único. Os processos de autorização de cursos de graduação em Medicina nos estados e no Distrito Federal deverão ser precedidos de procedimento de chamamento público para seleção de municípios e de propostas das instituições públicas de ensino superior dos seus respectivos sistemas de ensino.”
Podemos verificar, a partir do contexto acima descrito, que, em relação às instituições de ensino superior privadas, especialmente àquelas cujas autorização para oferta de cursos de Medicina são anteriores à edição da Lei n° 12.817/2018, está criado o Programa Menos Médicos.
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