O Ministério da Educação encaminhou ao presidente Michel Temer proposta de decreto que suspende a criação de novos cursos de medicina no Brasil pelos próximos cinco anos. Segundo o ministro José Mendonça Filho (DEM-PE), a medida visa congelar a “expansão de vagas de forma desordenada” que, segundo ele, “pode colocar em risco a qualidade de ensino”.
De acordo com o jornal Folha de S.Paulo, que noticiou o fato na sexta-feira (17), o decreto deverá ser sancionado pelo presidente até o fim deste ano.
Em nota, o MEC (Ministério da Educação) espera que ao longo dos próximos cinco anos o governo promova “um amplo e profundo estudo sobre a formação médica no Brasil, que contará com a cooperação do Conselho Federal de Medicina (CFM), associações médicas nacionais e será elaborado por especialistas e consultores com reconhecimento internacional”.
Desde 2013, com a entrada em vigor do programa Mais Médicos, do governo, a criação de cursos de medicina deixou de ser por solicitação das escolas de ensino superior e passou a ser condicionada a editais promovidos e de acordo com critérios determinados pelo próprio MEC. O objetivo é fomentar a formação de recursos humanos para saúde em cidades no interior do país, carentes de profissionais da área.
A medida atual visa interromper inclusive o lançamento de novos editais, mas sem afetar os dois já autorizados durante o governo de Dilma Rousseff. O primeiro, que abriu 37 cursos, a maioria em cidades paulistas, foi concluído ainda em 2016. O outro se deu em agosto, quando o atual governo liberou a criação de 11 novos cursos em municípios do Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul e Paraná. Na ocasião, o ministro disse que com isso ele estava cumprindo “mais uma etapa da nossa missão como gestores da educação brasileira”; Temer, por sua vez, fez uma analogia ferroviária e disse que o governo estava recolocando o Brasil nos trilhos.
Segundo o jornal O Estado de S. Paulo, desde então, o governo se reuniu pelo menos quatro vezes com associações da classe médica para discutir a questão do congelamento de novos cursos. Nas palavras do ministro, havia um “clamor dos profissionais de medicina” para que a suspensão fosse feita.
Como cursos são autorizados
Para criar um novo curso superior, de qualquer área, uma instituição de ensino superior, particular ou pública, deve pedir autorização ao MEC. As exceções são universidades e centros universitários, que possuem autonomia para isso.
No entanto, desde 2006, medicina – assim como direito, odontologia, psicologia e enfermagem – conta com uma camada a mais nesse processo de autorização. A instituição de ensino – sem exceções nesses casos – deve pedir autorização ao MEC que deverá, por lei, ouvir “manifestação” do conselho federal da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) para o curso de Direito, e do CNS (Conselho Nacional de Saúde) para os demais. No caso de medicina, o curso devia passar ainda por uma “avaliação in loco” feita pelo Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira).
Após sua autorização, quando o curso estiver ativo e já tiver cumprido metade da carga horária proposta, a instituição sofre inspeção pelo MEC para “reconhecimento” do curso, o que garante a ela o direito de diplomar seus alunos. No caso do curso de Medicina, o CNS participa de novo do processo
Para a abertura de cursos de medicina, até 2013, as instituições do Sistema Federal de Ensino, que exclui as públicas estaduais ou municipais, deviam cumprir uma série de requisitos.
Exigências para se abrir um curso de medicina
- A instituição deve fundamentar o pedido demonstrando a “relevância social da implantação do curso”, considerando a “demanda social por profissionais médicos na região de saúde do curso
- Seu IGC (Índice Geral de Cursos, que vai de 1 a 5; é usado pelo Inep para medir a qualidade dos cursos no Brasil) deve ser igual ou maior que três
- O corpo docente deve ter titulação e experiência profissional; o grupo responsável pelo projeto pedagógico deve ter pós-graduação e experiência, preferencialmente, de pelo menos cinco anos
- O curso deve estar integrado à gestão local de saúde do SUS, bem como contar com hospital próprio ou conveniado com a cidade, onde o estudante deve ser capaz de fazer estágio
- A relação de vagas dependerá da quantidade de leitos existentes no hospital próprio ou conveniado com atendimento pelo SUS (no mínimo, 60%), incluindo leitos de emergência ou pronto-socorro
- A cidade deve dispor de “pelo menos três programas de residência médica nas especialidades prioritárias” (como cirurgia, pediatria, clínica médica, medicina de família e ginecologia) e de Caps (Centro de Atenção Psicossocial)
Depois do programa Mais Médicos, passaram a valer os critérios estipulados pelos editais.
Dentre as exigências estavam: as cidades que os receberiam deveriam ter mais que 50 mil habitantes, não poderiam ser capitais, nem contar com oferta de curso de medicina na região em um raio de 75 km. As cidades a receberem os novos cursos deveriam ainda estar nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, contar com cinco leitos hospitalares ou mais por aluno e ter uma relação de médico por mil habitantes inferior a 2,7
No Brasil, de acordo com dados do CFM (Conselho Federal de Medicina), há 443 mil médicos em atividade. Assim, a média da densidade de médicos é de 2,14 por mil habitantes, sendo estados do Sul e Sudeste mais abastecidos que estados do Norte e Centro-Oeste.
Qual é o debate
O congelamento de novos cursos não é exatamente uma novidade. O governo chegou a adotar medida semelhante no passado, enquanto buscava adequar os critérios de exigência de abertura. Entre 2003 e 2004, por exemplo, a pedido do CNS (Conselho Nacional de Saúde), o MEC interrompeu a liberação de novos cursos de medicina por mais de 10 meses – em 2013, o mesmo aconteceu com cursos de direito.
As demandas na área da medicina, atendidas agora pelo governo federal, são feitas há quase duas décadas pelas entidades de classe regionais ou pelo CFM, o Conselho Federal de Medicina. Em 1999, matéria da Folha de S.Paulo reportava campanha criada pelo Conselho Regional de Medicina de São Paulo, e apoiada pelo sindicato e pela associação estadual da classe, chamada “Novos cursos de medicina fazem mal à saúde”. Em 2004, o mesmo conselho lançou uma nova campanha com o apoio de diversas outras estruturas de classe médica, sob o mesmo mote: “Proteja-se. Lute pela proibição da abertura de novos cursos de Medicina”, dizia.
As entidades alegavam e continuam alegando que o número de cursos de medicina cresceu desordenadamente, o que levou os estudantes a se formarem sem o devido ensino e treinamento.
Em números
Adotando duas décadas na base histórica de dados do MEC, sabe-se que em 1996 o país contava com 6.644 cursos de ensino superior. Desses, 86 eram de medicina. Direito tinha 262; e administração, 503.
Entre 1996 e 2016, o MEC autorizou a criação de 28.425 cursos em geral. Desses novos, 188 (0,6%) são de medicina. Os cursos que mais cresceram foram administração e pedagogia, que respondem juntos por 10% do total.
De acordo com os dados mais recentes, o Brasil conta com 279 cursos de medicina ativos no país (alta de 224% em relação a 20 anos atrás). Desses, 150 são em faculdades privadas e 69 (ou 25% do total) foram criados depois da lei do Mais Médicos, em 2013. Como comparação, administração tem atualmente 5.005 cursos (alta de 895%), e direito tem 1.184 (351%).
Argumentos a favor da medida
Número de cursos é alto: Especialistas que se colocam a favor do congelamento de abertura de novos cursos afirmam que o número de cursos de medicina no país são altos, o que compromete a qualidade. É o que defende, por exemplo, Jose Otavio Auler Junior, diretor da Faculdade de Medicina da USP. “A gente não é contra ter mais médicos, a formação dos médicos é que é problemática. Quando você começa a abrir faculdades uma atrás da outra, às vezes em municípios com menos de 50 km entre si, a qualidade da formação não fica garantida. Quem vai assegurar que aquele graduando esteja recebendo o treinamento adequado?”, disse ao Nexo. “Desse jeito, sem congelar, a gente vai ter uma série de profissionais com problemas de formação e aí não tem retorno. Nos exames do CRM, aqui em São Paulo, 60% [56,4%] não atingiram qualificação mínima. Isso hoje, imagina daqui uns anos. A gente vai ter profissionais no Brasil de um nível, e outros de outro nível mais baixo. E quem vai pagar o pato por isso é a população.”
Ao portal G1, o presidente da Associação Médica Brasileira, Lincoln Ferreira, opina ainda que médicos mal formados “são mais inseguros” e adotam medidas desnecessárias e custosas. “[Eles] solicitam exames desnecessários, não utilizam os tratamentos apropriados, não seguem os protocolos corretos, aumentando o tempo de internação dos pacientes e de intervenção médica sem real necessidade”.
Falta estrutura e corpo docente adequados: Favoráveis ainda apontam que a criação de novos cursos, principalmente por faculdades privadas, se dá por instituições e em cidades com estrutura aquém da considerada adequada. “A medicina se tornou um curso com alto grau de tecnologia. Então você precisa de um pessoal extremamente competente para ministrar as aulas e não há esse número de professores competentes hoje”, diz ao Nexo Eunice Durham, antropóloga e cientista política, professora emérita da USP e ex-membro da Secretaria de Educação Superior do MEC e do Conselho Nacional de Educação. “Congelar é uma medida acertada. Boa parte dessa procura por novos cursos se dá em escolas privadas, das quais boa parte não tem hospital. E uma faculdade de medicina sem hospital não é uma faculdade de medicina.” A existência de uma estrutura hospitalar próprio ou conveniada é uma das exigências do MEC para abertura de cursos.
Novos cursos não resolvem “vazio” no interior do país: Outro ponto da discussão é que a existência de novos cursos no interior do país, onde há carência de profissionais, pode até atrair estudantes para cursar a graduação, mas não é suficiente para fixar médico no local. “Medicina é uma profissão em que é preciso enraizar o profissional. Para isso, os atrativos são condições de trabalho, plano de carreira. Não é a escola que fixa o médico”, disse o médico Lavínio Camarim, presidente do Cremesp (Conselho Regional de Medicina de São Paulo) ao jornal O Estado de S. Paulo. Jose Otavio Auler Junior, diretor da Faculdade de Medicina da USP, diz que o médico formado no interior vai para os grandes centros buscar especialização e não volta, pois não há atrativos para o profissional. “Tem que ter uma política de Estado, as prefeituras têm que criar empregos, áreas de contratação perenes. Se o Brasil está investindo em atenção primária, que é a primeira ponta do atendimento, teria que investir também na criação de cargos, empregos bem remunerados para atenção primária, para atrair as pessoas para esses lugares. Não adianta nada só saturar de médico”, diz.
Argumentos contra
MEC deveria se guiar por necessidade social: Críticos à medida apontam que, ao atender o “clamor dos profissionais de medicina”, o Ministério da Educação deixa de guiar a abertura de novos cursos pela necessidade social – ou seja, a carência da população de uma cidade por médicos e equipamentos de saúde adequados –, para atender interesses de classe.
“Essa medida está muito mais para atender a uma pressão política dos conselhos do que garantir qualidade da graduação”, opina Sólon Caldas, diretor executivo da ABMES (Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior), ao Nexo.
“Isso serve para medicina como para qualquer outro curso. É isso que está em disputa na realidade. O Conselho Nacional de Saúde apoiou e apóia o Mais Médicos, apoia a lógica que o que deve presidir a abertura de novos cursos, não só na área de medicina, seja a necessidade social e a necessidade do sistema de saúde, de seus recursos humanos”, diz Ronald Ferreira dos Santos, presidente do CNS (Conselho Nacional de Saúde), também ao Nexo. Para ele, o congelamento seria uma “temeridade” por não levar em conta a possibilidade de “haver necessidade de, em um determinado local, nesse período, autorizar ou fazer funcionar um novo curso de medicina”.
Congelamento não garante qualidade: Os contrários à medida também rebatem o principal argumento das entidades de classe, relativo à qualidade. Para isso, apontam falta de fundamento técnico, baseado em dados.
“Barrar a criação de novas graduações não tem relação nenhuma com garantia de qualidade. Não há nenhum estudo que aponte isso. Eu vou deixar de abrir novos cursos para que os que já existem melhorem sua qualidade. Qual relação? Não existe”, diz Sólon Caldas, da ABMES. A associação, que defende os interesses de instituições de ensino superior privadas, diz que a cobrança deveria ser por um melhor trabalho de aferição da qualidade dos cursos, feito pelo MEC.
Cursos ainda não suprem demanda por médicos: Os atuais cursos não formam profissionais o suficiente para atender a demanda por profissionais da saúde no interior do país. Há regiões de grande concentração (vide mapa acima), enquanto outras sofrem do que o presidente do CNS chama de “vazios assistenciais”.
“É uma política que pode deixar vazios assistenciais importantes. A tarefa que se propôs o Mais Médicos quanto a esses vazios ainda não tinha sido completa. Para se formar um profissional médico, é preciso de pelo menos seis anos, e o programa tem só quatro anos”, diz Santos. “Não é à toa que tem se renovado o convênio com a Organização Pan-Americana para trazer médicos estrangeiros para ocupar esses vazios, porque o Brasil ainda não deu conta. Por isso digo que congelar a criação de novos cursos, sem uma avaliação com dados concretos do impacto que você tem, é um risco gigantesco de esses gargalos continuarem existindo.”
Para Sólon Caldas, da ABMES, o congelamento por mais cinco anos deve agravar a situação de falta de profissionais no interior, problema que, segundo ele, vai se estender por quase uma década a baixa abertura de cursos, considerando os quatro anos desde que o Mais Médicos foi aprovado.
“Essa medida ainda prejudica a formação dos profissionais da área como um todo. O anúncio fez com que entidades de outros cursos passassem a pedir o mesmo. Daqui a pouco não teremos cursos suficientes na área de saúde para atender a demanda. A população cresce e o número de profissionais cai”, diz.