Educação Superior Comentada | Políticas, diretrizes, legislação e normas do ensino superior

Ano 1 • Nº 4 • De 5 a 11 de abril de 2011

11/04/2011 | Por: Celso Frauches | 4965

CORPORAÇÕES PROFISSIONAIS X EDUCAÇÃO SUPERIOR: UMA INTERFERÊNCIA INDEVIDA E EQUIVOCADA

A interferência das corporações profissionais, instituídas para fiscalização do exercício de profissões reguladas em lei, tem início com a Lei nº 8.906, de 1994, que dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Os congressistas aprovaram, ao apagar das luzes, a inclusão do inciso XV no art. 54 da referida lei, dando competência do Conselho Federal da OAB para “colaborar com o aperfeiçoamento dos cursos jurídicos, e opinar, previamente, nos pedidos apresentados aos órgãos competentes para criação, reconhecimento ou credenciamento desses cursos”.

Essa “colaboração”, ao longo dos anos foi sendo regulamentada pela Comissão de Ensino Jurídico da OAB, criando indicadores e critérios de avaliação paralelos e conflitantes aos estabelecidos pela Comissão Nacional de Avaliação da Educação Superior (Conaes) do Ministério da Educação, adotados pelo Inep nos processos de avaliação para autorização, reconhecimento e renovação de reconhecimento de cursos de graduação – bacharelados, licenciaturas e tecnologia.

Na administração do ministro Fernando Haddad, essa “colaboração” acaba por resultar em condição imprescindível para a autorização de cursos de graduação em direito. O ministro informa, para quem quiser ouvir, sem qualquer amparo em lei, que não autoriza nenhum curso de graduação em direito que não tenha parecer favorável do OAB. O “parecer colaborativo” transformou-se, num passe de mágica, em “parecer decisório”.

O Decreto nº 5.773, de 2006, que pretende regulamentar – e vai muito além – o capítulo da educação superior da Lei nº 9.394, de 1996 (LDB), estende, no art. 37, a possibilidade dessa “colaboração” a outras corporações, na avaliação para autorização, reconhecimento e renovação de reconhecimento de cursos de graduação, nos seguintes termos:  

Art. 37.  No caso de curso correspondente a profissão regulamentada, a Secretaria abrirá prazo para que o respectivo órgão de regulamentação profissional, de âmbito nacional, querendo, ofereça subsídios à decisão do Ministério da Educação, em sessenta dias.
§ 1o  Decorrido o prazo fixado no caput, a Secretaria abrirá prazo para manifestação do requerente, por trinta dias.
§ 2o  Instruído o processo, a Secretaria examinará os documentos e decidirá o pedido. 

Com base nesse dispositivo, diversas corporações estão firmando “termo de colaboração” com o MEC, por intermédio da Secretaria de Educação Superior (Sesu). É o caso do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen).

A Lei nº 5.905, de 12 de julho de 1973, que dispõe sobre a criação dos Conselhos Federal e Regionais de Enfermagem, estabelece, no art. 8º, as competências e atribuições do Conselho Federal de Enfermagem, nos seguintes termos:

Art. 8º Compete ao Conselho Federal:
I - aprovar seu regimento interno e os dos Conselhos Regionais;
lI - instalar os Conselhos Regionais;
III - elaborar o Código de Deontologia de Enfermagem e alterá-lo, quando necessário, ouvidos os Conselhos Regionais;
IV - baixar provimentos e expedir instruções, para uniformidade de procedimento e bom funcionamento dos Conselhos Regionais;
V - dirimir as dúvidas suscitadas pelos Conselhos Regionais;
VI - apreciar, em grau de recursos, as decisões dos Conselhos Regionais;
VIl - instituir o modelo das carteiras profissionais de identidade e as insígnias da profissão;
VIII - homologar, suprir ou anular atos dos Conselhos Regionais;
IX - aprovar anualmente as contas e a proposta orçamentária da autarquia, remetendo-as aos órgãos competentes;
X - promover estudos e campanhas para aperfeiçoamento profissional;
XI - publicar relatórios anuais de seus trabalhos;
XII - convocar e realizar as eleições para sua diretoria; XIII - exercer as demais atribuições que lhe forem conferidas por lei.

A Lei nº 5.905, de 1973, como se constata, não atribui nenhuma competência ao Conselho Federal de Enfermagem para avaliar e oferecer subsídios ao Ministério da Educação para a autorização, reconhecimento e renovação de reconhecimento de cursos de graduação em Enfermagem. A LDB – Lei nº 9.394, de 1996 –, também não abre essa possibilidade para as corporações “colaborarem” na autorização, reconhecimento ou renovação de reconhecimento de cursos superiores. A Lei nº 10.861, de 2004, que institui o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior, o Sinaes, não possui nenhum dispositivo permitindo a interferência das corporações no processo avaliativo, este da competência exclusiva do MEC para as IES que integram o sistema federal de ensino.

Com base no citado dispositivo do Decreto nº 5.773, de 2006, o Cofen firmou “termo de colaboração” com a Sesu, tendo por objeto “a colaboração técnica do Conselho Federal de Enfermagem junto à SESu/MEC, em caráter experimental, contribuindo com subsídios para as ações de regulação e supervisão da educação superior definidos no Decreto nº 5.773/06, especificamente na área de Enfermagem”.

Ao tentar acesso ao texto integral do Termo de Colaboração firmado entre o Cofen e a Sesu (http://site.portalcofen.gov.br/sites/default/files/TERMO%20DE%20COLABORA%C3%87%C3%83O.pdf) fui surpreendido com a informação de que “a página que você está procurando pode ter sido removida, teve seu nome alterado ou está temporariamente indisponível”. Não foi possível conhecer os detalhes do termo.

Essa “colaboração” está sendo divulgada no portal do Cofen –  http://site.portalcofen.gov.br/node/6499, sendo tornada pública, mediante a transcrição, na íntegra, dos “pareceres” de comissões designadas pela direção do referido órgão, sem a identificação dos membros de tal comissão.  

O endereço eletrônico citado, acessado em 9 de abril corrente, transcreve pareceres referentes a trinta e cinco instituições de educação superior (IES), sendo trinta e quatro mantidas pela livre iniciativa e uma pela União. As diversas comissões concluem contrariamente à autorização, reconhecimento ou renovação de reconhecimento de trinta e quatro bacharelados em Enfermagem, todos de IES privadas. Apenas um curso obteve  avaliação positiva, exatamente, o mantido pela União, ministrado pela Universidade Federal do Piauí.

A Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999, regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, “direta e indireta, visando, em especial, à proteção dos direitos dos administrados e ao melhor cumprimento dos fins da Administração”. O art. 50 determina que os “atos administrativos deverão ser motivados, com indicação dos fatos e dos fundamentos jurídicos”. E mais (§ 1º): “a motivação deve ser explícita, clara e congruente, podendo consistir em declaração de concordância com fundamentos de anteriores pareceres, informações, decisões ou propostas, que, neste caso, serão parte integrante do ato”.

Nenhuma das conclusões dos pareceres das comissões do Cofen tem amparo em lei. Não há indicação dos fundamentos jurídicos ou qualquer motivação legal, clara e congruente.  

O Cofen estabeleceu normas próprias de avaliação, que não atendem aos indicadores e critérios de avaliação adotados pelo Inep, após aprovação da Conaes (Comissão Nacional de Avaliação da Educação Superior). O instrumento de avaliação do Cofen possui quatro dimensões, a seguir especificadas:  

* DIMENSÃO 1 – PERTINÊNCIA: Considerar aspectos referentes à demanda pelo curso na região, observando a quantidade de vagas ofertadas frente à população local.
* DIMENSÃO 2 – RELEVÂNCIA: Considerar aspectos referentes aos impactos sociais e econômicos que a oferta deste curso provocará na região. 
* DIMENSÃO 3 – INOVAÇÃO: Considerar aspectos que se oponham à estrutura tradicional dos cursos já existentes na área, incorporando melhorias que reflitam na otimização de trabalho pedagógico.
* DIMENSÃO 4 – FORMAÇÃO PROFISSIONAL: Considerar aspectos que atendam à estrutura dos cursos em relação à legislação profissional do sistema Confen/Conselhos Regionais de Enfermagem.

Destaco algumas pérolas, extraídas ao acaso, de alguns pareceres, em cada “dimensão”, sem identificar o curso ou a IES, por questões obvias.

Na Dimensão 1, ao analisar as vagas ofertadas, o parecer da Cofen registra que no município sede do curso há dois cursos de graduação em Enfermagem, sendo um a distância, em polo credenciado pelo MEC, mas as vagas “não estão definidas no sistema e-MEC” (para o polo).

Em outro parecer, na Dimensão 2, que deve considerar “aspectos referentes aos impactos sociais e econômicos que a oferta deste curso provocará na região”, o parecer faz avaliação negativa do PPC (Projeto Pedagógico do Curso) por não destacar “ações e situações que favoreçam a produção artística/cultural”.

Na Dimensão 3, as críticas aos trinta e quatro cursos mantidos pela iniciativa privada são unânimes. O Cofen exige inovação curricular e metodológica para todos os cursos de Enfermagem. Não basta cumprir as diretrizes curriculares nacionais que refletem avanços importantes para a plena formação do enfermeiro.

A Dimensão 4 considera os aspectos que atendam à estrutura dos cursos em relação à legislação profissional. Em todos os pareceres, exceto o único favorável, as comissões criticam a estrutura curricular por contabilizar, entre as 4.000h da carga horária mínima do curso, as atividades complementares. A Resolução CNE/CES nº  4/2009 estabelece, no art. 1º, a carga horária mínima para os bacharelados em Biomedicina (3.200h), Ciências Biológicas (3.200h), Educação Física (3.200h), Enfermagem (4.000h), Farmácia (4.000h), Fisioterapia (4.000h), Fonoaudiologia (3.200h), Nutrição (3.200h) e Terapia Ocupacional (3.200h). O parágrafo único dispõe que “os estágios e as atividades complementares dos cursos de graduação referidos no caput não deverão exceder a 20% (vinte por cento) da carga horária total do curso, salvo nos casos de determinações específicas contidas nas respectivas Diretrizes Curriculares” (grifei). A Resolução CES/CNE nº 3/2001 estabelece como componentes curriculares obrigatórios, além das disciplinas teórico-práticas, o estágio supervisionado, com a carga horária mínima de 20% sobre a carga horária total do curso, atividades complementares e trabalho de conclusão de curso. Um dos pareceres é contrário ao reconhecimento do curso porque a IES “incluiu na carga horária total as Atividades Complementares”, componente curricular obrigatório pelo CNE. Quando a Câmara de Educação Superior define um componente curricular como obrigatório é claro e evidente que a carga horária dessa atividade, especificada na matriz curricular, inclui-se na carga horária mínima fixada para o curso.

Ao analisar o regime de trabalho do corpo docente em determinado curso, a comissão do Cofen resolve criar indicadores próprios. Avalia que o regime é “insatisfatório”, porque dos quinze professores de um curso somente sete (46,6%) estão em tempo integral e parcial, sendo quatro em TI (26,6%). Isto para uma faculdade. Para os centros universitários exige-se 20%.

Todos esses pareceres são publicados no portal do Cofen, aberto ao público. Não são conclusivos e nem têm amparo na Lei do Sinaes ou na LDB ou qualquer outra lei. São simples “subsídios” para a Sesu. IES e cursos com pareceres favoráveis – conceito 3, 4 ou 5 –, na avaliação do Inep, esta com amparo na Lei, têm a sua imagem prejudicada com esse tipo de publicação, levando insegurança institucional e jurídica para toda a comunidade acadêmica, além de transmitir à sociedade em que a instituição está inserida uma imagem negativa, sem corresponder à realidade.

Esses “subsídios” do Cofen e de outros conselhos que firmarem “termo de colaboração” com a Sesu são levados em consideração por essa secretaria do MEC, que pode ingressar na Comissão Técnica de Acompanhamento da Avaliação (Ctaa)  do Inep com recurso, especialmente, em processos de autorização e de reconhecimento de cursos, inviabilizando projetos com avaliação positiva do órgão competente para fazê-lo, o Inep, com base em diretrizes da Conaes. A Ctaa foi instituída com a finalidade de acompanhar os processos periódicos de avaliação institucional externa e dos cursos de graduação do Sinaes, além de ser responsável por julgar os recursos interpostos pelas IES e pelas secretarias do MEC envolvidas nesse processo.

Os pareceres do Confen e outras corporações, emitidos com base em “termos de colaboração”, em processos de autorização, reconhecimento e renovação de reconhecimento de cursos, não devem ser publicados, em qualquer mídia, por serem peças de instrução desses processos, sem qualquer valor legal. Cabe à Sesu tomar as providências, junto ao Cofen e órgãos similares, com os quais firmou termos de colaboração, para impedir a divulgação indevida dos referidos pareceres.

 

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“NECESSIDADE SOCIAL” OU “NECESSIDADE DE CONTROLE”

O conceito de “necessidade social” vem sendo ressuscitado como critério para autorizar cursos de graduação, mesmo quando comprovada a qualidade da iniciativa, mediante avaliação in loco, promovida pelo próprio MEC, por intermédio do Inep.

O art. 209 da Constituição de 88 dispõe que “o ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as seguintes condições: I - cumprimento das normas gerais da educação nacional; II - autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público”.

As “normas gerais da educação nacional” e as relativas à autorização constam da Lei nº 9.394, de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional (LDB), com as alterações de leis posteriores. As normas de “avaliação de qualidade pelo Poder Público”, para a educação superior, estão contidas na Lei nº 10.861, de 2004, que institui o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior, o Sinaes. Não há nenhuma outra lei em vigor disciplinando a atuação da livre iniciativa na área da educação superior.

A Lei nº 9.394, de 1996, a LDB, dispõe sobre o processo de autorização de instituições de educação superior (IES) no art. 46, nos seguintes termos:

 

Art. 46. A autorização e o reconhecimento de cursos, bem como o credenciamento de instituições de educação superior, terão prazos limitados, sendo renovados, periodicamente, após processo regular de avaliação.
sect; 1º Após um prazo para saneamento de deficiências eventualmente identificadas pela avaliação a que se refere este artigo, haverá reavaliação, que  poderá  resultar,  conforme o caso,  em desativação de cursos e habilitações, em intervenção na instituição, em suspensão temporária de prerrogativas da autonomia, ou em descredenciamento.
§ 2º No caso de instituição pública, o Poder Executivo responsável por sua manutenção acompanhará o processo de saneamento e fornecerá recursos adicionais, se necessários, para a superação das deficiências.

 

Não há exigência de atendimento à chamada “necessidade social” para a autorização de instituições ou de cursos superiores.

A autorização de IES e de curso superior depende de ato do Poder Público, nos termos do Decreto nº 5.773, de 2006, que regulamenta o capítulo da educação superior da LDB. Segundo o § 1º desse artigo, “são modalidades de atos autorizativos os atos administrativos de credenciamento e recredenciamento de instituições de educação superior e de autorização, reconhecimento e renovação de reconhecimento de cursos superiores, bem como suas respectivas modificações”.

A Lei nº 9.394, de 1996, em seu art. 90, revogou, expressamente, a antiga LDB (Lei nº 4.024, de 1961) e a legislação da Reforma Universitária de 68 (Lei nº 5.540, de 1968), revogando, por consequência o Decreto-lei nº 464, de 1969, que estabeleceu “normas complementares” à Lei nº 5.540, de 1968, e os demais decretos-lei relacionados à questão. A LDB somente  não revogou as disposições das Leis nos.  4.024, de 1961, e 5.540, de 1968, que foram “alteradas pelas Leis nos.  9.131, de 1995, e 9.192, de 1995. A Lei nº 9.131, de 1995, altera dispositivos da LDB de 1961 para criar o Conselho Nacional de Educação, em substituição ao Conselho Federal de Educação, e regulamentar a participação das pessoas jurídicas de direito privado na mantença de IES no sistema federal de ensino. A Lei nº 9.192, de 1995, altera dispositivos da Lei nº 5.540, de 1968, somente para regular o processo de escolha de dirigentes de universidades mantidas pela União.

Dos decretos-lei do regime militar de 64 para a educação superior permanece em vigor, exclusivamente, o Decreto-lei nº 1.044, de 1969, que dispõe sobre tratamento excepcional para alunos portadores das afecções que indica, recepcionado pela Lei nº 10.793, de 2003, que dá nova redação ao  § 3º do art. 26 da Lei nº 9.394, de 1996 (LDB).

O Decreto-lei nº 464, de 1969, que estabelecia “normas complementares à Lei nº 5.540, de 28 de novembro de 1968”, introduziu o conceito de necessidade social, na Reforma Universitária de 68, tendo em vista a política de centralização das decisões do poder militar que então governava o país, nos seguintes termos:

 

Art. 2º Será negada autorização para funcionamento de universidade instituída diretamente ou estabelecimento isolado de ensino superior quando, satisfeitos embora os mínimos requisitos prefixados a sua criação não corresponda às exigências do mercado de trabalho, em confronto com as necessidades do desenvolvimento nacional ou regional.
§ 1º Não se aplica a disposição deste artigo aos casos em que a iniciativa apresente um alto padrão, capaz de contribuir, efetivamente, para o aperfeiçoamento do ensino e da pesquisa nos setores abrangidos.

 

Revogada a legislação referente à Reforma Universitária de 68 pela vigente LDB, tornou-se também extinto o conceito de necessidade social para a autorização de IES e de cursos de graduação.  A LDB, de 1996, não manteve o cumprimento de “necessidade social” como critério de autorização do Poder Público para o funcionamento de IES e de cursos superiores. Com efeito, a atual LDB está distante daquelas pretensões de supervisionar os sistemas de ensino mediante normas que se valem do autoritarismo do poder central, com a missão limitadora e rasteira de “formar mão de obra para o mercado de trabalho”, tendo o Estado como senhor absoluto da vontade e das necessidades individuais dos cidadãos brasileiros. Ao contrário, a LDB estatui a flexibilização dos controles sobre os elementos iniciais do processo educacional e determina maior vigor das ações do Estado sobre os resultados desse processo, especialmente mediante avaliação dos cursos e instituições de ensino, como prevê a Lei nº 10.861, de 2004, a Lei do Sinaes. O que deve importar, num Estado moderno, é a qualidade da educação ofertada aos cidadãos, em qualquer nível de ensino.

A adoção do conceito de “necessidade social” nos processos de autorização de cursos de graduação em direito, reivindicada pela Comissão de Ensino Jurídico da OAB, não tem, também, amparo em lei. A Lei nº 8.906, de 1994 (Art. 54, XV), diz que compete ao Conselho Federal (da OAB) “colaborar com o aperfeiçoamento dos Cursos Jurídicos, e opinar, previamente, nos pedidos apresentados aos órgãos competentes para criação, reconhecimento ou credenciamento desses cursos;". Não dá a essa corporação de advogados competência para estabelecer normas para esse processo, muito menos, descumprir a lei ou “criar” sua própria lei. A mesma regra deve ser aplicada às demais corporações que, mediante “colaboração”, estão participando, progressivamente, do processo avaliativo do Sinaes. Idem, em relação às manifestações do Conselho Nacional de Saúde a respeito dos cursos de medicina, odontologia e psicologia.

A reintrodução do conceito de “necessidade social” nos processos de autorização de cursos de graduação, sem amparo em lei, é uma tentativa de ressuscitar os mesmos critérios utilizados pelo regime militar, com a edição do Decreto-lei nº 464, de 1969, em pleno Ato Institucional n° 5. A “necessidade de controle” não pode sobrepor-se à necessidade de expansão, com qualidade e responsabilidade social, da educação superior mantida pela livre iniciativa, custeada pela poupança dos estudantes ou seus responsáveis, mediante o pagamento das mensalidades escolares.

 

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ONDE ESTÃO OS DOUTORES QUE OS DOUTORES DO MEC ACHAM QUE EXISTEM? – 2

No livro Educação superior – cobras & lagartos (Ilape, 2010), inseri um artigo, publicado na Revista Ilape de Direito e Gestão Educacional (www.ilape.com.br/revista), em novembro de 2009, no qual analiso a exigência de percentuais elevados de doutores nos instrumentos de avaliação in loco, aprovados pela Comissão Nacional de Avaliação da Educação Superior (Conaes) e operacionalizados pelo Inep, nos processos de credenciamento e recredenciamento de IES e de autorização, reconhecimento e renovação de reconhecimento de cursos de graduação. O mesmo em relação aos insumos para a composição do Conceito Preliminar de Curso (CPC), uma invenção dos burocratas do MEC, com o indicador de vinte por cento de doutores para os cursos de graduação.

Após analisar os dados do Censo da Educação Superior – 2008, que registravam carência de doutores para o atendimento aos indicadores exigidos pelo MEC, escrevia em novembro de 2009:

 

Outro fator que deve ser levado em conta é o relativo às características ou pré-requisitos exigidos por lei para os diversos tipos de IES. Somente para as universidades, onde ensino, pesquisa e extensão devem ser indissociáveis (art. 207 da Constituição), a lei (Lei nº 9.394/96 – LDB, inciso II, art. 52) exige o mínimo de um terço de mestres ou doutores. Os indicadores para centros universitários são estabelecidos em decreto (Decreto nº 5.786/2006, inciso II, art. 1º), também, com um terço de mestres ou doutores. Para as IES não-universitárias (faculdades integradas, faculdades, escolas ou institutos superiores) não há nenhuma exigência legal.

O art. 66 da LDB, por outro lado, dispõe que “a preparação para o exercício do magistério superior far-se-á em nível de pós-graduação, prioritariamente em programas de mestrado e doutorado” (grifei). Ou seja, na educação superior a lei permite o exercício do magistério para professores certificados em cursos ou programas de pós-graduação lato sensu (especialização, segundo a Resolução CES/CNE nº 1/2007) e stricto sensu (mestrado e doutorado, nos termos da Resolução CES/CNE nº 1/2001). “Prioritariamente” não significa majoritariamente.

Constata-se que os dados que integram as bases de dados do governo brasileiro – ministérios da Educação e da Ciência e Tecnologia – não oferecem nenhum indicador que dê validade aos critérios de avaliação de titulação docente como os constantes dos instrumentos de avaliação dos cursos de graduação adotados pelo Inep e, muito menos, para os insumos do CPC. Não há nenhum estudo sério, publicado e validado pela comunidade científica brasileira, que dê amparo a esses critérios de análise.

 

Como, então, os doutores do MEC chegaram à conclusão de que doutor é sinônimo de qualidade de um curso de graduação? Puro achismo. Ou corporativismo entre os doutores.

 

Com a divulgação do Censo da Educação Superior-2009, em janeiro de 2011, voltei a levantar o estoque de doutores em atuação nas IES e cursos superiores. A situação não apresenta mudanças que me permitam alterar a conclusão acima.

 

O Censo da Educação Superior-2009 registra a existência de 359.089 funções docentes, sendo 223.505 (62,3%) mestres e doutores; destes 97.208 (43,5%) atuam em IES públicas e 126.297 (56,5%) nas IES privadas. Dos 92.891 doutores, 65% (60.468) atuam nas IES públicas e 32.423 (35%) nas particulares. A menor quantidade de doutores nas instituições privadas pode ser explicada, em parte, pelo número expressivo de faculdades e centros universitários (1.983), que não têm compromisso institucional e legal com a pesquisa e nem com a oferta de mestrados e doutorados, em relação às 86 universidades particulares.

A distribuição de doutores em todo o país, segundo revela o Censo, é extremamente desigual, como pode ser constatado no quadro seguinte:

Censo da Educação Superior – 2009

Distribuição de mestres e doutores por região geográfica

 

Região

Totais (todas as funções)

Mestres
(M)

Doutores
(D)

M/D
Quant


%

BRASIL 359.089 130.614 92.891 223.505 62,27
Norte 22.685 8.003 3.463 11.466 3,19
Nordeste 70.089 25.385 15.156 40.541 11,29
Sudeste 166.378 59.076 50.161 109.237 30,42
Sul 67.185 26.950 17.606 44.556 12,41
Centro-Oeste 32.752 11.200 6.615 17.815 4,96

 

 

Fonte: Inep/MEC, Censo da Educação Superior-2009, abril, 2011.

Cerca de 70% dos mestres e doutores atuam em IES do Sudeste e Sul (153.793), enquanto apenas 69.822 (30%) estão em IES das demais regiões (Norte, Nordeste e Centro-Oeste). O Centro-Oeste, que sedia a Capital da República, apresenta decepcionantes 4,96% de mestres e doutores, ficando em penúltimo lugar!

O mesmo Censo revela a existência de 2.314 instituições de ensino superior (IES), sendo 2.069 (90%) mantidas pela livre iniciativa e 245 (10%) pelo Poder Público. Em uma divisão simples, encontramos a relação doutores/IES de 40/1. Caso a relação seja doutores/cursos superiores (graduação e pós-graduação stricto sensu), os dados oferecem uma realidade que o MEC não pode negar. Em 2009, existiam 28.970 cursos de graduação (presenciais e a distância) e 4.221 cursos e programas de mestrado e doutorado, num total de 33.191 cursos superiores. Desses números resulta a relação doutores/cursos em 2,79/1. Sabendo-se que mestrado ou doutorado abriga um mínimo de dez doutores, cada curso, dos quais, pelo menos, sessenta por cento em tempo integral, posso concluir que somente nos cursos e programas de pós-graduação stricto sensu estão alocados mais de 42 mil doutores em TI e/ou dedicação exclusiva.

 

Essa realidade os doutores do MEC não podem ignorar. Não podem continuar achando que as IES, públicas e privadas, podem ter, num passe de mágica, vinte ou trinta por cento de doutores em cada curso de graduação. Até porque, como diz o poeta Noel Rosa, quem acha vive se perdendo... (Quem acha, vive se perdendo, por isso eu já vou me defendendo...)