Educação Superior Comentada | Políticas, diretrizes, legislação e normas do ensino superior

Ano 1 • Nº 24 • De 23 a 29 de agosto de 2011

29/08/2011 | Por: Celso Frauches | 6084

A UNIVERSIDADE E OS PRÉ-REQUISITOS E CRITÉRIOS PARA O SEU FUNCIONAMENTO

Diversas mídias divulgaram, nas últimas semanas, estudo realizado pelo conselheiro Antônio Freitas, da Fundação Getúlio Vargas e membro da Câmara de Educação Superior (CES) do Conselho Nacional de Educação (CNE), sobre os critérios mínimos para o credenciamento de universidade.

Tal estudo, baseado nos cadastros do Ministério da Educação (MEC) sobre os cursos e programas de pós-graduação stricto sensu, em nível de mestrado e doutorado, revelaram que quase 40% das universidades brasileiras não cumprem os critérios mínimos exigidos pela CES/CNE para o credenciamento e o recredenciamento de universidades. Sabe-se, assim, que das 184 universidades existentes então, 67 (36,4%) não apresentavam o mínimo de três programas de mestrado e um de doutorado. Uma das exigências para o recredenciamento.  Para o credenciamento são quatro mestrados e dois doutorados, no mínimo.

Estudo similar havia sido feito pelo ex-conselheiro Edson Nunes, quando dos debates sobre as alterações dos critérios de credenciamento e recredenciamento de universidades, iniciado pelo Parecer CES/CNE nº 37, aprovado em 1º/2/2007 e reexaminado pelo Parecer CES/CNE nº 121, aprovado em 10/5/2007.

Em 1º de fevereiro de 2007, no citado Parecer nº 37, o então conselheiro Edson Nunes registrava a existência de 177 universidades, das quais 99 (55,9%), mais da metade, não atendiam ao requisito mínimo de ofertarem três mestrados e um doutorado reconhecido pelo MEC. É o que demonstra o quadro seguinte, extraído do citado parecer:

Quadro 1 - Universidades com pelo menos três mestrados e um doutorado

Categoria Administrativa

Cumprem o requisito?

Total

Não

Sim

Universidades Federais

15

38

53

28,3%

71,7%

100,0%

Universidades Estaduais

20

13

33

60,6%

39,4%

100,0%

Universidades Municipais

4

1

5

80,0%

20,0%

100,0%

Universidades Privadas

60

26

86

69,8%

30,2%

100,0%

Total

99

78

177

55,9%

44,1%

100,0%

Em 29 de agosto de 2011, existem 192 universidades credenciadas, segundo o cadastro do Inep (http://emec.mec.gov.br) A situação deve ser mais crítica, em virtude das novas universidades federais, criadas ao arrepio da Constituição (Art. 207) e da LDB (Art. 52).

Mas, quantidades de mestrados e doutorados são critérios de avaliação da qualidade e densidade educacional e científica de uma universidade?

A Constituição de 88, no art. 207, dispõe que “as universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”.

O critério constitucional é, portanto, a “indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”.  Atendido esse pré-requisito, a universidade poderá gozar de “autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial”. Qual a universidade brasileira que preenche esse requisito constitucional? “Desconfia-se” que nenhuma. O estudo não revela. E nem nenhum outro estudo contemporâneo. O que se lê, em textos de eminentes educadores e pensadores, é que a “indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão” é uma utopia constitucional. Um devaneio dos constitucionalistas de 88, os da “constituição cidadã”, que institui a medida provisória no regime presidencialista.

A avaliação desse princípio constitucional para a existência e funcionamento de uma universidade é um desafio para o MEC, que tem outras preocupações, distantes da certificação da qualidade da educação superior. Mas, o legislador poderia alterar esse dispositivo constitucional, dando-lhe uma redação mais consentânea com os objetivos de uma universidade do século 21. Por exemplo:

Art. 207. As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão exercendo as funções de ensino, pesquisa e extensão com qualidade e responsabilidade social e institucional, mediante avaliação decenal, na forma da lei.

Mas, “na forma da lei” e não na forma de portarias, resoluções de colegiados, notas técnicas, despachos ou achismos, produzidos nos meandros da burocracia do MEC, como acontece atualmente, sem qualquer debate sério com a comunidade acadêmico-científica das universidades ou de seus legítimos representantes.

A lei vigente sobre as diretrizes e bases da educação nacional, a LDB – Lei nº 9.394, de 1996 –, estabelece, no art. 52 e incisos, os pré-requisitos para a existência e o funcionamento de uma universidade, nos seguintes termos:

Art. 52. As universidades são instituições pluridisciplinares de formação dos quadros profissionais de nível superior, de pesquisa, de extensão e de domínio e cultivo do saber humano, que se caracterizam por:

I - produção intelectual institucionalizada mediante o estudo sistemático dos temas e problemas mais relevantes, tanto do ponto de vista científico e cultural, quanto regional e nacional;

II - um terço do corpo docente, pelo menos, com titulação acadêmica de mestrado ou doutorado;

III - um terço do corpo docente em regime de tempo integral.

A expressão que identifica as universidades como “instituições pluridisciplinares” é primária e não merece um comentário sério.

Os incisos II e III são de linear compreensão, porque quantitativos, e qualquer amanuense sabe como identificá-lo.

O inciso I remete-nos ao ensino, à pesquisa e à extensão, sem qualquer compromisso com a “indissociabilidade” dessas tradicionais funções universitárias. Mas, o que pretende o legislador com “produção intelectual institucionalizada mediante o estudo sistemático dos temas e problemas mais relevantes, tanto do ponto de vista científico e cultural, quanto regional e nacional”?

A LDB não remete a nenhuma regulamentação infralegal, mas a Câmara de Educação Superior do CNE, em 1998, pela Resolução nº 2, deliberou interpretar esse dispositivo da LDB e estabelecer indicadores para comprovar a “produção intelectual institucionalizada”, para fins de credenciamento e recredenciamento de universidade.

Por essa resolução (Art. 1º) “a produção intelectual institucionalizada consiste na realização sistemática da investigação científica, tecnológica ou humanística, por um certo número de professores, predominantemente doutores, ao longo de um determinado período, e divulgada, principalmente, em veículos reconhecidos pela comunidade da área específica”.

Mas, como comprovar essa produção com a esotérica redação dada ao art. 1º? O art. 2º determina, então, que a “produção intelectual institucionalizada” será comprovada:

a)       por três cursos ou programas de pós-graduação stricto sensu (mestrado e doutorado), avaliados positivamente pela CAPES e/ou

b)      pela realização sistemática de pesquisas que envolvam:

I - pelo menos 15% do corpo docente;

II - pelo menos metade dos doutores;

III - pelo menos três grupos definidos com linhas de pesquisa explicitadas.

A “realização sistemática de pesquisa” substituiria, assim, os “três cursos ou programas de pós-graduação stricto sensu”.

Mas, permanece a dúvida: como comprovar a “realização sistemática de pesquisa”? Os incisos do § 1º determinam que, nesse caso, a comprovação será realizada por “intermédio dos seguintes indicadores”:

I.     participação dos docentes da instituição em congressos, exposições, reuniões científicas nacionais ou internacionais, e, especialmente, nos congressos nacionais da respectiva área com apresentação de trabalhos registrada nos respectivos anais;

II.     publicação dos resultados dos trabalhos de investigação em livros ou revistas indexadas ou que tenham conselho editorial externo composto por especialistas reconhecidos na área;

III.     desenvolvimento de intercâmbio institucional sistemático através da participação de seus docentes em cursos de pós-graduação, troca de professores visitantes ou envolvimento em pesquisas interinstitucionais;

IV.     desenvolvimento de programas de iniciação científica, envolvendo estudantes dos cursos de graduação correspondentes às temáticas investigadas.

O § 2º esclarece que, na avaliação do inciso II, será considerado “o número de publicações e de comunicações apresentadas em Congresso, devendo, nos últimos 3 anos, este número ser equivalente, no mínimo, a 9% do número de docentes”. E o § 3º complementa que essa avaliação “concerne àquela desenvolvida pelo docente durante a vigência do seu contrato com a instituição”.

Essa resolução vigorou até 15 de outubro de 2010, quando foi publicada a Resolução CES/CNE nº 3/2010, que a revogou e pretende regulamentar o art. 52 da Lei nº 9.394, de 1996, dispondo “sobre normas e procedimentos para credenciamento e recredenciamento de universidades do Sistema Federal de Ensino”. O fundamento é o Parecer CES/CNE nº 107/2010, elaborado por uma comissão composta pelos conselheiros Antonio de Araujo Freitas Junior, Antonio Carlos Caruso Ronca, Edson de Oliveira Nunes, Mario Portugal Pederneiras e Paulo Monteiro Vieira Braga Barone, tendo origem naquele parecer de 1º/2/2007 – o de nº 37.

Isto significa que todas as universidades credenciadas ou recredenciadas até 15 de outubro de 2010 não tinham a necessidade de ofertar qualquer quantidade de mestrado ou doutorado, mas desenvolver a “realização sistemática de pesquisa” para comprovar o cumprimento da “produção intelectual institucionalizada”, exigida pelo inciso I do art. 52 da LDB.

As universidades privadas criadas nas duas últimas décadas o foram por um mix das regras previstas nas alíneas a e b do art. 2º da Resolução CES/CNE nº 2/1998, somente revogadas ao final de 2010. As universidades públicas, especialmente, as mantidas pela União, criadas na última década, sequer atenderam a esse mix. Foram autorizadas do zero, sem alunos ou professores; sem ensino, pesquisa ou extensão. Indissociabilidade? Que indissociabilidade, pois não havia nenhuma função universitária em funcionamento! Essas universidades federais foram criadas sem qualquer avaliação prévia, como estabelecia a citada resolução, mas por simples vontade da presidência da República, prontamente atendida pelo ministro da Educação. Ou vice-versa?

Os indicadores de qualidade para as universidades, a partir da vigente Resolução CES/CNE nº 3/2010, são fundamentalmente numéricos: quantidades de anos de funcionamento, de cursos de graduação, de cursos e programas de pós-graduação (mestrado e doutorado), de docentes em tempo integral ou com titulação de mestrado ou doutorado, 60% de cursos de graduação reconhecidos. E por aí vai. É o que demonstra o art. 3º:

Art. 3º São condições prévias indispensáveis para o requerimento de credenciamento como universidade:

       I.  um terço do corpo docente, com titulação de mestrado ou doutorado;

       II.  um terço do corpo docente em regime de tempo integral;

       III.  Conceito Institucional (CI) igual ou superior a quatro na última Avaliação Institucional Externa do Sinaes;

       IV.  Índice Geral de Cursos (IGC) igual ou superior a quatro na última divulgação oficial do Inep;

       V.  oferta regular de, no mínimo, sessenta por cento dos cursos de graduação reconhecidos ou em processo de reconhecimento devidamente protocolado, no prazo regular;

       VI.  oferta regular de, pelo menos, quatro cursos de mestrado e dois de doutorado, reconhecidos pelo MEC;

       VII.  compatibilidade do PDI e do Estatuto com a categoria de universidade;

       VIII.  não ter sofrido penalidades, nos últimos cinco anos.

Por absurdo, ainda usa um tal “Índice Geral de Cursos (IGC)”, marginal ao Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior, o Sinaes, este sim, criado por lei. O IGC é uma invenção da burocracia do MEC, que pretende avaliar a qualidade das IES pelas quantidades, mas que é uma sopa de números sem qualquer fundamento científico ou acadêmico. Uma invenção de quem não sabe avaliar a qualidade da educação e precisa aligeirar esse processo, por motivos midiáticos. Mas a sua divulgação dá ibope, numa mídia descompromissada com o real processo de avaliação da qualidade da educação superior brasileira. Simplesmente repete o que o MEC divulga por sua área de comunicação.

Essa Resolução ainda comete outra aberração jurídica, em confronto direto com o art. 207 da Constituição e o artigo 52 da LDB, ao estabelecer critérios privilegiados para o credenciamento das universidades federais. É o que comprova o art. 6º da citada norma do CNE, transcrita a seguir:

Art. 6º O credenciamento das universidades federais, criadas por lei, terá rito próprio, caracterizado pelas seguintes exigências e prazos, observados os termos do art. 46, § 1º, da Lei nº 9.394/1996:

        I.  até 60 (sessenta) dias após a sanção de sua lei de criação, as Instituições Federais de Educação Superior (IFES) deverão inscrever-se no cadastro eletrônico do MEC, com suas informações gerais e cursos iniciais, observando, no que couber, a regra do art. 28 do Decreto nº 5.773/2006;

        II.  até 180 (cento e oitenta) dias após a posse do primeiro Reitor, as IFES deverão inserir, em formulário eletrônico próprio, o Estatuto e o PDI da instituição, em conformidade com o art. 15 do Decreto nº 5.773/2006;

        III.  após a análise documental dos elementos referidos no inciso anterior, a Secretaria competente emitirá parecer, encaminhando-o à apreciação da CES/CNE.

Parágrafo único. A deliberação favorável da CES/CNE, homologada pelo Ministro da Educação, finalizará o processo de credenciamento.

A Câmara de Educação Superior do CNE, pretendendo dar validade infralegal aos atos da presidência da República, sem sua prévia audiência, cria esse absurdo processo de credenciamento ao contrário, após a publicação da lei credenciando a universidade federal. Tem coisas que existem somente no Brasil. E não é só a jabuticaba...

Fato consumado, será importante que o MEC inicie o processo de recredenciamento das universidades federais por ele supervisionadas, dentro do ciclo avaliativo seguinte ao de sua autorização, mediante lei, para verificar o cumprimento das normas e quantidades exigidas pelo art. 72 da LDB. Além das demais, também federais, que funcionam há décadas e ainda não cumprem essas quantidades. Simples. As mantidas pela livre iniciativa podem vir em seguida, porque não são mantidas pelo orçamento da União. A aplicação dos recursos públicos no desenvolvimento da educação superior merece prioridade, para que a sociedade saiba, de forma transparente, como são aplicados esses recursos.

Qualquer dúvida em relação aos temas aqui tratados, entre em contato com a Coluna do Celso.