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Censo do Ensino Superior 2021: análises e tendências

05/12/2022 | Por: Minha Biblioteca | 2929

O principal resultado do Censo do Ensino Superior 2021 trouxe um percentual expressivo: um aumento de 474%, em uma década, no número de ingressantes em cursos superiores de graduação, na modalidade EaD. Os dados, divulgados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) e Ministério da Educação (MEC) refletem a pesquisa entre  2011 e 2021, quando o ensino a distância passou de uma representatividade de 18,4% para 62,8%. No mesmo período, os estudantes que iniciaram em cursos presenciais diminuíram 23,4%.

Essa expansão é um dos pontos abordados por Max Damas, Assessor da ABMES (Associação Brasileira de Mantenedoras do Ensino Superior) e Doutor em Sistemas e Computação, entrevistado do Blog da Minha Biblioteca, que analisa quais os principais fatores que desenharam esse cenário e o que essa preferência dos estudantes pode impactar na Educação daqui para a frente.

MB – Qual a relevância do Censo do Ensino Superior 2021 neste momento de transição de governos?
Max Damas  –  Vivemos em um mundo onde a tomada de decisão é uma habilidade essencial e saber trabalhar, realizar a gestão, traçar indicadores a serem alcançados e metas batidas, a partir de dados, é fundamental. Então, o Censo traz todas essas possibilidades dando um olhar de drone, panorâmico, sobre as maiores dinâmicas que acontecem dentro no Ensino Superior Brasileiro. É uma ferramenta valiosa para qualquer gestor, mantenedor, pois irá apontar caminhos e ajudar a ter algo essencial para traçar cenários futuros e montar estratégias. Independentemente da mudança de governo, cada vez mais a tomada de decisão deve ser orientada por dados ou o chamado data driven.

Deve-se considerar que há resultados que são constatações daquilo que nós percebíamos como tendência. Claramente, a taxa de aumento das matrículas na educação a distância é um fator já previsível e que o Censo, principalmente o de 2020 e 2021, confirmam. A diminuição de vagas preenchidas e matrículas em cursos que necessitam de menos infraestrutura física, apontando isso para educação a distância, também é um fator que se demonstra mais forte. É o caso das licenciaturas, em que há de se pensar sobre como serão preparados os professores para Educação Básica, que terá grande parte da sua formação a distância. Precisaremos estar atentos a isso, além da taxa, cada vez menor, de matrículas nas licenciaturas, o que pode trazer no horizonte um esvaziamento de professores e profissionais na educação.

Percebemos, de uma forma bastante nítida, o impulso das Instituições de Ensino Privado, passando dos três quartos das matrículas no Brasil, num avanço expressivo, na última década, de cerca de 33%. Temos ainda muito a desenvolver e provocar. Não um amplo crescimento em diversos cursos, mas qual a proposta para o Brasil e para o loco regional da oferta, que estejam cada vez mais vocacionados nestas direções e, também, para a  sociedade. Não tratarmos a horizontalidade, mas de  forma pontual a verticalidade das ofertas de cursos. São pontos importantes a serem considerados.

Quando se pensa no EaD com esse avanço, isso traz a necessidade de  intensificar a transformação digital das instituições, as habilidades digitais dos professores e pensarmos também que, por mais que imaginemos que exista um grande avanço nas tecnologias digitais, o Brasil ainda é um país de iletrados digitais. Você ter acesso a celulares ou a internet não significa que saibamos como trabalhar com esse novo mecanismo que se dá no meio digital.

MB – Quais outros resultados apresentados no Censo 2021 que merecem maior atenção dos gestores e docentes?
Max Damas    – É importante observar que o planejamento estratégico e onde se pretende alcançar, e não as diretrizes em si, é que irão se modificar nas IES (Instituições de Educação Superior). É uma realidade o que os números do Censo demonstram: precisamos avançar em tecnologia. Porém, a transformação digital, em si, não é uma questão apenas de ferramentas, mas muito fortemente de métodos, o que se observa com o crescimento da educação a distância e esse mix dentro da modalidade presencial, onde se pode ter o hibridismo implementado, com aulas on-line e off-line e encontros presenciais e virtuais. Esse equilíbrio exige professores e profissionais que saibam lidar, não com as ferramentas exatamente, mas com os métodos apropriados para aumentar o engajamento dos estudantes, a participação, o pensamento crítico, a criatividade e merecem uma reflexão.

Para mim, isso deve ser o ponto crucial dentro das IES e, com o crescimento em larga escala do EaD, como vamos fazer essa aferição da aprendizagem? Aquela não mais e exclusivamente cognitiva, mas a habilidade que ocorre nas relações interpessoais e na habilidade que cada indivíduo tem de lidar com as mudanças da sociedade, com questões de ética, de criatividade, de resolução de problemas, de comunicação, de liderança. Por mais que a gente olhe e conceba ser um aspecto tecnológico, cada vez mais é essencial olhar para o humano.

MB – De que forma os resultados podem impactar nas novas diretrizes das IES, a partir de 2023?
Max Damas   – Trata-se de uma tendência sem volta, com a busca de um  equilíbrio. Aos poucos, os cursos começaram a se caracterizar pelo que possuem de possibilidades a serem tratadas no seu projeto pedagógico, numa mistura de tecnologias, metodologias, espaços e tempos. Abordagens que devem ser trabalhadas, priorizando uma melhor experiência para o estudante.

A educação a distância não irá se sustentar sozinha porque, para grande parte das profissões que são trabalhadas dentro das IES, você precisa ter o relacionamento entre as pessoas, execução de projetos entre os indivíduos, problemas que estão inseridos na vivência, nos cinco sentidos humanos. Inevitavelmente a EaD irá se ampliar, mas terá uma carga de eventos que mesclarão o digital com o físico e sincronicidade com assincronicidade. Ao  depender ou não de um tempo para poder estudar, continuaremos com a  necessidade da presencialidade, principalmente para executar as habilidades essencialmente humanas. Ainda que as ferramentas  tecnológicas não consigam isso, levará muito tempo  para serem suficientes para simular habilidades humanas ou problemas que surgem das relações humanas. É sim um caminho sem volta, mas terá espaço para todos.

MB – A modalidade EaD acompanha uma expansão da Educação Superior no Brasil? Este resultado pode ser contraditório quando há uma movimentação e necessidade de reforçar a volta ao presencial, um desejo dos alunos e das IES?
Max Damas  – Esse interesse que alguns alunos demonstram pela volta à presencialidade, em alguns casos, se dá pela passagem para o mundo digital de ambientes de aprendizagem, salas, espaços virtuais, as relações entre docentes-estudantes, que ainda não estão preparados para esse universo digital.

O que tenho pensado bastante, refletido, que ocorreu fortemente com a pandemia, desde março de 2020, 2021 e chega a 2022, quando  se começou a ter uma estabilidade, foi que boa parte dos processos de ensino e aprendizagem, nas IES,  foi realizada como uma forma de “remotizar” ou se transferir para o mundo digital, o que já acontecia no presencial, e não se pensar digitalmente, desde o início. A partir do momento que se fizer o exercício de traçar estratégias de ensino-aprendizagem, do ponto de partida digital, teremos um grande avanço.

O que os alunos carecem quando dizem que querem voltar para o presencial,  ocorre muito pela falta do contato humano, claramente, e porque as IES não estão usando ainda as melhores práticas que devem ser executadas e aplicadas para que esse ambiente virtual de aprendizagem seja de fato interessante, que consiga manter boa parte do tempo da atenção humana, que é e sempre foi a moeda mais disputada. É uma revolução dentro dos espaços de aprendizagem, sejam eles virtuais ou físicos.

MB – Muitos defendem que o EaD irá conviver com as outras modalidades: presencial e híbrida e tem como principais atrativos menor custo; otimização de tempo e mais oferta. Você concorda?
Max Damas  –  Na verdade, na regulação da Educação Superior brasileira só existem duas modalidades: a distância e presencial. Em cada uma delas há percentuais que se pode utilizar. Num curso considerado EaD, até no máximo 30% de presencialidade. Na modalidade presencial, até 40% de virtualidade. É em cima dessa matemática que é possível inserir as tecnologias digitais, as plataformas, para trabalhar com essa noção da sincronicidade do tempo ou da assincronicidade, numa combinação de tempo e dos espaços, virtuais ou físicos. Isso  cabe muito à autonomia das IES, ao elaborar os projetos pedagógicos para distribuir as atividades de ensino-aprendizagem pensando no seu público e características do curso que deseja ofertar.

O Hibridismo não é uma modalidade. É um conjunto de metodologias, estratégias, em diferentes espaços e tempos em que se consegue fazer uma entrega. No caso da Educação, a entrega é de  aprendizagem. Na verdade, a Educação em si, na sua origem, sempre foi híbrida, porque é esse mix. No Brasil, esse blend se traduziu como Hibridismo. Nos Estados Unidos é  Blended, essa mistura de diferentes sabores, experiências para propiciar um melhor efeito e resultado. Não existe a modalidade híbrida. Híbrida é a Educação na sua essência.

“Temos uma sociedade cada vez mais ágil, com tomadas de decisão, necessidades de rapidez e de fluidez e a educação a distância, quando bem-produzida, é uma estratégia”

MB – Como os recursos tecnológicos, inclusive os acervos digitais, têm papel importante ou contribuem no acesso ao conhecimento, tanto na modalidade EaD como presencial?
Max Damas  – Quando falamos de acervos e plataformas digitais devemos pensar nos conteúdos. De uma forma ou outra, principalmente dos últimos quatro anos para cá, eles são de fácil acesso para qualquer pessoa: estudantes ou professores. O que as plataformas precisam fazer é traçar como disponibilizar esses conteúdos usando as diversas mídias e possibilidades de interação. Como propiciar que esse conhecimento seja diferente, não por si, mas pela experiência que pode proporcionar sobre o que se deseja ao se navegar durante uma leitura, um exercício ou ainda uma curadoria de conteúdos. Que tipo de experiência se quer provocar e que consiga deixar o estudante atento na maior parte do tempo.

É o que a indústria do entretenimento consegue: manter nossa atenção porque tem algo ali que é interessante.  O desafio é que esses conteúdos possam ser associados a planejamentos de aula e planos de ensino praticamente roteirizados, no sentido de se fazer links com contexto, ambiente, situações-problemas. É uma estratégia para se conseguir trazer o estudante, cada vez mais, para “consumir” esses conteúdos de uma forma agradável. Caberá às IES ter criatividade e habilidade na comunicação para aproximá-los.

MB – Antes da pandemia havia um maior receio dos estudantes por cursar e uma certa resistência do mercado de trabalho em aceitar e valorizar mais o profissional que faz EaD. Pode comentar estes aspectos?
Max Damas   – Esse receio tem caído por terra nas grandes corporações do mundo inteiro, que têm tratado os seus treinamentos e capacitações usando essa mistura da educação a distância com presencial, como forma de otimizar o tempo, de engajar mais os seus profissionais. Por isso, há muito a aprender também com elas. Temos uma sociedade cada vez mais ágil, com tomadas de decisão, necessidades de rapidez e de fluidez e a educação a distância, quando bem-produzida, é uma estratégia. Apesar de já termos tido, ao longo da história, outras formas de educação a distância, precisamos pensar que somos muito recentes com relação a EaD no modelo digital. Não chegamos há 20 anos nessa implementação.

Já no mercado de trabalho, não há uma diferença em relação a formação, se é a distância ou presencial. O que se procura  são profissionais que saibam como resolver problemas e isso independe da modalidade. Existe um processo claro e certo de aprendizado que envolve muito uma nova habilidade ou um conjunto de novas habilidades dos professores, para poderem conviver com esse mundo em que se exerce o ensino por diferentes meios.

Quando se pensava em um bom professor, ele deveria possuir uma ampla clareza, na sua habilidade de se comunicar, além do conhecimento, da experiência. Agora o docente continuará sendo reconhecido por tudo isso, mas incluindo sua habilidade de se comunicar por diversas ferramentas. Claro que existem cursos que estão ainda distantes dessa habilidade mais forte. Mas há áreas de graduação mais próximas da realidade digital. Por isso, quando se fala em caminho sem volta, ele é disruptivo e se pode olhar apenas para a frente, não mais para trás.

“As ferramentas são alavancas que impulsionam para frente ou para cima, o que diminui o esforço. As digitais da mesma  forma. Mas é preciso uma intencionalidade para se mover algo e alguém que o faça. Esse alguém somos nós, humanos”

MB – Qual o perfil do aluno de EaD nos últimos anos e como esse perfil interferiu nos resultados do Censo?
Max Damas  –  O perfil que era, até pouco tempo, de adultos com a idade mais próxima aos 30  anos, tem diminuído para uma interface entre os  mais perto dos 25 anos. Procuram o EaD estudantes que estão há mais tempo sem estudar, por terem finalizado o Ensino Médio, voltaram pela educação a distância, trabalham e buscam  flexibilidade. É este público que os cursos terão que observar e atender.

Também quando se pensa em cursos a distância, se fala muito em dar autonomia ao estudante. Mas é importante que se reflita, nos projetos pedagógicos das IES, que não se dá autonomia a alguém, para alguém. Autonomia é um  processo de construção, a partir de uma série de atividades, em que o indivíduo, aos poucos, adquire confiança, se torna autossuficiente e, então, conquista sua autonomia.  Não   basta “largar” o estudante, deixá-lo conviver dentro da plataforma de ensino e aprendizagem considerando que irá adquirir o aprendizado por si só. Nós estaremos nos enganando em relação a isso. Precisamos motivar e catalisar esse processo de ensino-aprendizagem.

Mesmo que a idade do estudante tenha se reduzido, existe ainda uma característica importante, que chama atenção no Censo, em relação aos cursos presenciais. Há hoje uma grande quantidade de alunos matriculados em instituições privadas. Se analisarmos os 10 maiores cursos neste contexto, veremos que temos 5 deles com uma regulação muito forte para não oferta de educação a distância e que são rigidamente regulados, como Direito, Psicologia, Enfermagem, Medicina e Odontologia. Quando começar a se abrir a possibilidade para alguns desses cursos irem para educação a distância, veremos um movimento claro e maior mobilização para esta modalidade.

MB – Quais habilidades e competências favorecem um curso EaD efetivo para o aprendizado?
Max Damas   –  A alta interação, uma experiência significativa em relação  à resolução de problemas, um equilíbrio maior de eventos síncronos e a sintonia dos estudantes se encontrarem entre si e com os professores. Por isso, é importante que as IES estejam atentas ao aluno, desde o instante em que ele faz a matrícula, até  concluir o curso, sempre de uma forma proativa. A não proatividade pode redundar em evasão e a alta proatividade irá mantê-lo conectado, ligado, envolvendo-o em atividades que façam sentido para ele.

Também quando pensamos em EaD, pode estar espalhado do Sul ao Norte, mas o  mesmo curso de uma IES não pode ser igual. Precisa ser adaptado às realidades de cada região. Isso fará com que os estudantes se sintam prestigiados e diferenciados.  Por isso, temos um caminho muito grande para  evoluir e ter um EaD significativo. Felizmente muitas IES estão nessa procura e já existem excelentes práticas nesse sentido.

MB – É possível traçar o melhor e pior cenário, sinalizados pelo Censo,  pensando em estratégias e metodologias do ensino-aprendizado de imediato? E como projetar o futuro da Educação, a partir  desses dados?
Max Damas   – É impossível traçar o melhor ou pior cenário, pois todos são  possibilidades. O pior é aquele em que tivermos um professor distante do processo e das relações humanas. Fomos acostumados a ter referências e o professor é uma delas, pois passou por caminhos que os aprendizes ainda não trilharam. Essa troca de experiências, a partir daqueles que viveram e aprenderam mais sobre determinado conhecimento, é essencial.

O melhor cenário é o oposto, em que há cada vez mais a troca,  independentemente do espaço, se físico ou digital. As estratégias de aprendizado que terão efeito, não serão mais as baseadas no consumo de conteúdos, exclusivamente, e memorização, mas sim naquilo que fizer sentido, pois  a Educação precisa fazer sentido.

Também é fundamental que possamos desenhar propostas pedagógicas que tragam indivíduos que se denominam “nexialistas”, aqueles que possuem habilidade de fazer conexões, dar sentido, a partir de experimentos e conhecimentos, e consigam propor soluções com habilidades de comunicação, criatividade e resolução de problemas.

Vale lembrar que as ferramentas são alavancas que impulsionam para frente ou para cima, o que diminui o esforço. As digitais da mesma  forma. Mas é preciso uma intencionalidade para se mover algo e alguém que o faça. Esse alguém somos nós, humanos. O que queremos e precisamos mover é a transformação do indivíduo para uma sociedade complexa e diversa, mas enormemente cheia de oportunidades.

 


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