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15 mil alunos pagam por cursos da USP

14/02/2011 | Por: Folha de S.Paulo | 2966

"A Universidade de São Paulo (USP) é pública e gratuita", afirma o site oficial da instituição. Neste ano, porém, 15 mil matrículas uspianas (de um total de quase 114 mil) serão preenchidas por alunos pagantes. Um MBA com o título "Real estate - economia setorial e mercados", ou pós-graduação lato sensu, na prestigiosa Escola Politécnica da USP, sai por R$ 29.040. Dá para parcelar em 24 vezes. A promessa para quem vencer a carga horária de 420 horas é receber "Certificado USP".

As aulas são dadas no campus do Butantã (zona oeste de São Paulo), e a maioria dos professores pertence ao corpo docente da USP.

Para a turma de humanas, tem o curso com nível de pós lato sensu chamado marketing político, ministrado aos sábados na ECA (Escola de Comunicações e Artes).

Nos cursos pagos, não se fala em "preço" ou "mensalidade". Em vez disso, o desembolso recebe o nome de "investimento". Assim, o site da ECA diz que o "investimento" é de 20 parcelas de R$ 780. Total: R$ 15.600.

Não faltam opções para o pessoal das biológicas. Como o curso de especialização em prótese dentária, ministrado pela Faculdade de Odontologia da USP de Ribeirão Preto. Para ter aulas uma vez por semana, ao longo de 24 meses, o estudante deverá "investir" R$ 1.200 mensais. Total: R$ 28.800.

Serão, neste ano, mais de 500 opções de cursos pagos, segundo Maria Arminda do Nascimento Arruda, pró-reitora de Cultura e Extensão Universitária. "Todos homologados pela Câmara de Cursos de Extensão", assegura.

Raíssa (o nome é fictício), 32, formou-se em veterinária na Unip, depois de tentar três vezes a Fuvest (vestibular da USP). O jeito foi tornar-se adicta em "práticas profissionalizantes", pagas é claro, da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia. Raíssa já tem dois certificados com a cobiçada logomarca da USP em seu escritório. Quer mais.

Segundo a pró-reitora Maria Arminda, os cursos pagos "ajudam a universidade a manter atividades de extensão com face social, voltadas a um público carente".

Os cursos pagos da USP abrangem as áreas de aperfeiçoamento, atualização e especialização (para público já graduado) e de difusão (para público mais amplo).

Isso significa que os cursos de graduação e de pós stricto sensu ainda seguem a tradição da gratuidade, que vem da fundação da USP, em 1934.

A USP também oferece 351 cursos gratuitos de extensão. São cursos, entretanto, com "pouco apelo de mercado", como definiu um aluno interessado em se aprofundar na língua francesa. Esse curso é pago, da mesma forma que o de alemão ou o preparatório para o Toefl (o teste de proficiência em língua inglesa).

Cursos grátis de línguas, neste ano, só os de armênio, galego, iídiche e tcheco. Pagando, pode-se fazer o curso de fundamentos da cerâmica, voltado para público acima de 16 anos. Preço: R$ 250 por mês. Duração de 4 meses. Ou um de estética e gestão da moda, ou de desenho, ou de tecnologia da informação. Ou de gestão hospitalar, de prótese sobre implantes dentários.
 

Promotoria já atuou contra as cobranças

É antiga a discussão sobre a cobrança de cursos na USP. Em 2005, uma ação do Ministério Público pedia o fim dos cursos pagos ministrados por fundações privadas controladas por docentes. O resultado foi o afastamento de várias dessas fundações do campus e a USP deixar de emprestar sua logomarca para adornar certificados de cursos ministrados por entidades privadas. Com o Cocex (Conselho de Cultura e Extensão Universitária) homologando os cursos de extensão, tanto pagos quanto gratuitos, o que ocorreu foi a reabilitação das fundações. Basta ser "homologado" para ser USP -mesmo que o curso seja dado por uma fundação privada.

Também as unidades ganharam o direito de, diretamente, cobrar por atividades de extensão que promovem. Desde que sejam "homologadas" pelo Cocex. Assim é que o aluno de extensão que fará psicologia política, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades, no campus zona leste, é orientado a depositar R$ 400 da matrícula diretamente em conta da unidade. Segundo o professor João Zanetic, presidente da Adusp (Associação dos Docentes da USP), o expediente da homologação representa a volta das fundações em grande estilo para dentro da universidade. "Trata-se de uma nova ofensiva no sentido de solapar o paradigma da gratuidade do ensino público", diz. Para Zanetic, os cursos pagos introduzem uma lógica mercadológica estranha à universidade. "Em vez de se dedicar à produção de conhecimento inovador, os docentes podem ser impelidos a buscar assuntos da moda para atender à demanda dos pagantes." (LC)

 

ANÁLISE

Falta ao país fazer o debate sobre a gratuidade do ensino superior público

HÉLIO SCHWARTSMAN
ARTICULISTA DA FOLHA

Do jeito que está ocorrendo, a chamada "privatização da USP" vem de forma atabalhoada e provavelmente ilegal. Sem controles formais mais rígidos, é difícil até saber se a universidade recebe uma remuneração adequada por emprestar sua estrutura e marca a cursos que não se distinguem daqueles oferecidos pela iniciativa privada.

São erros de procedimento que não desmerecem a discussão de fundo: a universidade pública deve ou não ser gratuita? É preciso qualificar melhor esses termos.

Universidade gratuita é algo que contraria as leis da física e da economia. Prédios, laboratórios, professores e funcionários não se materializam do nada. Se não é o aluno que está pagando por sua formação, alguém o faz. Em geral é a sociedade, através dos impostos cobrados a todos. A questão, portanto, é definir qual modelo convém mais ao país. Ambos os lados têm bons argumentos.

Os defensores da gratuidade sustentam que, mesmo nos EUA, onde até as universidades estatais cobram vultosas anuidades, o grosso do financiamento das instituições é público, ocorrendo principalmente por meio de verbas diretas para pesquisa e doações filantrópicas (que envolvem renúncia fiscal).

Os que advogam pelo pagamento recorrem à noção de justiça social. Embora a formação do médico ou de qualquer outro profissional seja investimento público (interessa à sociedade tê-los), é grande a apropriação privada que ocorre devido à graduação. Estudo de Marcelo Neri, da FGV, mostra que a diferença entre o salário do médico e o de alguém que não estudou chega a 1.503%.

Ambas as partes também costumam brandir argumentos sobre democratização, mas eles podem ser facilmente contornados com bolsas de estudo e empréstimos.

A grande verdade é que, enquanto vários países já travaram esse debate e tomaram sua decisão, por aqui nós o estamos evitando -e apelando a gambiarras.