Concluir o ensino médio e ter a oportunidade de ingressar logo em uma faculdade não é a realidade de todos os jovens. Ao contrário, a maioria adia o sonho, ou de fato nem tem essa perspectiva. Mas, mesmo com muitas adversidades, tem uma turma que se supera e hoje comemora a conquista do tão sonhado diploma.
Pesquisa da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (ABMES) aponta que 70% dos jovens que terminaram o ensino médio não foram para a faculdade, no ano passado, por dificuldades financeiras. Lorraine Ferreira, 23 anos, sabe bem o que isso significa.
Quando ela concluiu os estudos, em São Gabriel da Palha, no Noroeste do Estado, o melhor panorama que tinha era conseguir emprego em uma fábrica de jeans, já que o município é um polo produtor. E assim foi: por um ano trabalhou como costureira e não vislumbrava ter curso superior. Na família, pais e irmão têm ensino fundamental incompleto e só uma irmã também terminou o nível médio.
Mas, por insistência de uma madrinha, resolveu fazer o Enem e foi aprovada para o curso de Educação Física, na Ufes. Ao passar, felicidade e apreensão se misturaram porque Lorraine e sua família não teriam como bancar sua permanência em Vitória.
A mesma madrinha se dispôs a pagar um semestre do aluguel que a jovem dividiria com uma colega. Assim que chegou na Ufes, conheceu a Companhia de Dança Andora, na qual ficou como bolsista durante toda a graduação, e os programas de assistência estudantil.
“É muito raro ver uma pessoa sem condições financeiras na Ufes; não porque não deseje fazer um curso superior, mas por não saber como vai se manter. Depois que soube disso, foi ficando mais fácil, com auxílio para alimentação, moradia, para tirar cópias. Não poderia ficar se não fosse assim”, ressalta Lorraine que, agora, quer fazer mestrado.
Essa é a mesma sensação de Anderson Patrick Ferreira Alves, 25, que já concluiu a licenciatura em História e está terminando o bacharelado no mesmo curso porque pretende se dedicar a pesquisas, além de dar aulas. “Sou o primeiro na minha família a concluir o ensino superior na Ufes, sempre estudei em escola pública e tive acesso por meio do sistema de cotas. Assim que entrei, fui contemplado com auxílio-permanência. Do contrário, seria difícil fazer o curso. Esses programas de inclusão dão oportunidades a quem não as teria de outra forma”, avalia.
Pró-reitora de graduação da Ufes, Zenólia Figueiredo diz que o sistema de cotas na instituição funciona há 10 anos, antes mesmo da vigência da lei, que é de 2012. No princípio, o critério era somente socioeconômico e, a partir da legislação, também foram incluídos os de raça e cor. Metade das vagas é para as cotas, metade para ampla concorrência. Mas Zenólia observa que, mesmo com essa divisão, não se pode dizer que os cotistas estão ficando com as vagas dos demais concorrentes porque a Ufes ampliou a sua oferta.
“A cota também é importante porque, quando se trabalha com política de inclusão, a gente absorve outro perfil de estudantes. E é bom falar: no dia a dia, a gente não vê diferença no desempenho acadêmico”, assegura Zenólia.
ESTRATÉGIA
Para fazer um curso superior, a estratégia de Hérika Mutz Soares, 24, foi diferente. Com dinheiro para pagar apenas a matrícula, escolheu um curso na UVV com uma mensalidade mais acessível e que, em sua avaliação, poderia garantir estágio ou trabalho mais cedo para ter renda que bancasse seus estudos.
E lá foi Herika fazer Ciências Contábeis sem saber como pagaria a primeira mensalidade. Então, foi chamada para trabalhar no DCE, que lhe garantiu desconto de 50% nas prestações e a possibilidade de pagar o valor somente no final do semestre. Quando a situação apertava mais um pouco, na faculdade ou em casa, ela vendia bombons para ajudar nas despesas.
Nos últimos dois anos, a produção de doces, que era ocasional, passou a receber mais dedicação de Herika e também de sua mãe, que estava sem trabalhar. O negócio deu tão certo que, mesmo após formada em Contabilidade, a jovem decidiu manter o Balonê Doces e, numa food bike, vende seus bolos e bombons no Centro de Vitória.
Fiz todo um plano financeiro para a empresa, sou muito mais organizada, consegui comprar um carro à vista. Antes de entrar no curso, estava cheia de dívidas. Hoje tenho crédito e consigo pensar até em investimentos. Embora não esteja na área, fez toda a diferença para minha vida”, ressalta.
INSPIRAÇÃO
No caso do advogado trabalhista Leonardo de Jesus Lima, 29, o desejo de fazer um curso superior era de infância. Filho de uma diarista e de um pedreiro, que à noite também trabalhava como porteiro, ele se encantou pela profissão quando acompanhou o pai em uma obra num escritório de advocacia. “Eu tinha 9, 10 anos. A partir desse convívio, me despertou o interesse pelo Direito”, lembra.
Leonardo admite que não era dos melhores alunos mas, quando finalmente entrou na faculdade, viu que precisaria se esforçar bastante para conseguir se formar e, depois, exercer a profissão. E a dedicação aos estudos não era sua única responsabilidade. Ele sempre precisou trabalhar.
“Fui embalador de supermercado, caixa de farmácia, trabalhei como vendedor de TV por assinatura”, conta o advogado.
Depois, à medida que avançava os períodos, conseguiu estágio com uma boa remuneração em um escritório onde, após a formatura, foi efetivado já com a carteira da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), para a qual conseguiu aprovação ainda na faculdade. Atualmente, tem seu próprio escritório e é o orgulho da família.
“Meus pais se sentem realizados por ver que, com a educação, consegui chegar até aqui e que valeu cada esforço.”
O professor da Ufes Luiz Carlos da Silva, 54, também sabe o valor da educação, não só pela profissão que escolheu, mas pelo rumo que sua vida tomou na juventude. Na idade em que deveria fazer faculdade já havia trabalhado como engraxate e vendedor de laranjas, e ele e sua família não tinham condições de arcar com as despesas de um curso fora.
FRUSTRAÇÃO
A cidade de Rio Piracicaba onde morava, no interior de Minas Gerais, não tinha oferta. Ao mineira, Luiz Carlos sentia-se frustrado porque não poderia ir. Então, decidiu desembarcar em Vitória, onde tinha parentes, na expectativa de estudar na Ufes. Os planos não deram certo e ele precisou se virar sozinho. “Precisei me estruturar primeiro antes de fazer faculdade”, afirma.
Para tanto, um dos trabalhos que realizou foi o de vigilante; foi inclusive concursado do Estado nessa atividade. Então, em 2002, Luiz Carlos se inscreveu no cursinho popular Programa Universidade para Todos (Pupt), e se preparou para o vestibular: foi aprovado em Arquivologia, curso do qual hoje é professor efetivo há 10 anos.
Mas toda àquela sua sede por estudos da juventude não passou: Luiz Carlos fez mestrado e agora está concluindo o doutorado na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Para ele, tudo valeu muito a pena. Até as dificuldades do dia a dia de quem morava no alto do Forte São João, chegava em casa à meia-noite, estudava até as 2h e acordava às 4h30 para ir trabalhar como vigilante na Praia da Costa, em Vila Velha.
“Hoje colho os frutos disso. A qualidade de vida da minha família mudou bastante. Às vezes são coisas simples, que nos dão dignidade, como ter um endereço. No Forte, eu não tinha, e dependia de favor. Meus sonhos pequenos foram realizados. O estudo me trouxe conhecimento que faz com que eu possa conseguir ir aonde quiser”, finaliza.
APÓS CÂNCER, JOVEM VIRA MÉDICA
Enquanto muitos jovens têm dificuldades de acesso e permanência na universidade por questões financeiras, outros enfrentam obstáculos ainda mais delicados. É o caso da médica Hayla Lorenzoni Guedes Garcia, 27, que descobriu um câncer em estágio avançado durante o curso.
Hayla estava no final do 8º período quando, no intervalo de um mês, emagreceu 10 quilos. Fora esse sintoma, que na ocasião atribuiu ao fim de um longo namoro, a jovem não sentia mais nada. Ainda assim, fez exames, que não indicaram doença.
“Com o tempo, juntaram outros sintomas. Não queria imaginar o pior; se fosse um paciente meu, já teria associado. Comigo, não.”
Passaram-se cerca de seis meses até que apareceu um tumor na costela. Após tomografia e consultas, o diagnóstico: linfoma de Hodgkin, no estágio 4 - a fase mais avançada. Junto, soube que ficaria careca e não poderia ter filhos. “Bateu desespero!”
No dia seguinte, porém, Hayla decidiu que não se deixaria abater. E contou muito com a família e os amigos. Ninguém deixou de visitála, teve até quem cortou o cabelo junto - outra etapa difícil - antes de Hayla ficar careca. “Ter todo esse suporte me deu forças. Tinha fé que iria melhorar.”
Quase um ano depois, Hayla voltou para a faculdade. Perdeu um semestre letivo, porém ganhou amigos na nova turma. Mas ainda optou por participar da festa de formatura com sua turma original. “Eram minha família, meus anjos da guarda que me acompanharam no processo mais difícil”, revela Hayla, hoje recuperada.