Cinco de abril de 2018 foi mais um dia normal na vida dos brasileiros, porém, para os integrantes do Conselho Federal de Medicina (CFM) e da Associação Médica Brasileira (AMB) foi um dia de comemorações e de conquistas, pois, após anos de luta, o então ministro da Educação, Mendonça Filho, e o presidente da República, Michel Temer, assinaram a Portaria 328, que proíbe a criação de novos cursos de Medicina e a ampliação de vagas já existentes no Brasil.
“Art. 1º - Fica suspensa por cinco anos a publicação de editais de chamamento público para autorização de novos cursos de graduação em Medicina, nos termos do art. 3º da Lei nº 12.871, de 22 de outubro de 2013, e o protocolo de pedidos de aumento de vagas em cursos de graduação em Medicina ofertados por instituições de educação superior vinculadas ao sistema federal de ensino, de que trata o art. 40 do Decreto nº 9.235, de 15 de dezembro de 2017”, informa portaria publicada no Diário Oficial de 06 de abril de 2018.
“Essa portaria veio ao encontro de uma luta antiga do CFM”, conta Lúcio Flávio Gonzaga Filho, conselheiro e coordenador da Comissão de Ensino Médico do CFM.
Entretanto, o que foi motivo de comemoração para uns, foi de abominação para outros. No mesmo dia, instituições como a Associação Brasileira de Mantenedoras do Ensino Superior (ABMES) e o Sindicato das Entidades Mantenedoras de Estabelecimentos de Ensino Superior no Estado de São Paulo (Semesp) publicaram notas repudiando a decisão. “A entidade considera inaceitável que a medida tenha como fundamento que associações de classe [...] apresentem sugestões que são típicas de proteção de mercado para aqueles que já se formaram”, pontuou o Semesp em e-mail enviado à imprensa.
Segundo dados da Demografia Médica do Brasil, elaborado pelo CFM em parceria com a Universidade de São Paulo (USP), atualmente, o País possui 2,1 médicos por mil habitantes, número próximo ao de países desenvolvidos (Japão e Coréia do Sul estão com 2,4 e 2,2 médicos por mil habitantes, respectivamente). Porém, a média mundial é de 3,4, ou seja, estamos muito longe de alcançá-la.
Pensando por esse lado, será que essa moratória é realmente efetiva ou apenas prejudicará ainda mais aqueles que não possuem acesso a uma saúde básica de qualidade? Qual é o verdadeiro motivo desta portaria?
Luta do CFM: mais qualidade e menos quantidade (por enquanto)
“Promover o bem-estar da sociedade, disciplinando o exercício da medicina por meio da sua normatização, fiscalização, orientação, formação, valorização profissional e organização, diretamente ou por intermédio dos Conselhos Regionais de Medicina (CRMs), bem como assegurar, defender e promover o exercício legal da medicina, as boas práticas da profissão, o respeito e a dignidade da categoria, buscando proteger a sociedade de equívocos da assistência decorrentes da precarização do sistema de saúde”, essa é a missão CFM e também pode ser considerada a justificativa do seu firme apoio a essa portaria.
Parte do Conselho Federal de Medicina desde 2009, Dr. Lúcio Flávio diz que essa preocupação latente é focada na formação médica, que, segundo ele, está sendo prejudicada devido à proliferação acelerada de novas faculdades de Medicina pelo País. “Ninguém é contra a se criar uma faculdade de Medicina com estrutura de ensino, de prática, com professores qualificados, com laboratórios, ambulatórios de assistência integrada à saúde e ao ensino, ninguém é contra isso. O que nós somos contra é a criação de faculdades sem estrutura alguma, sem as estruturas mínimas para a formação de um médico”, explica.
A solução para o Conselho é que, com a moratória, seja possível fazer uma avaliação da qualidade das instituições já existentes para garantir que os estudantes tenham acesso a um ensino de qualidade e, consequentemente, para que a sociedade tenha médicos bem formados.
Por outro lado, Sólon Caldas, diretor-executivo da ABMES, tem uma visão muito diferente do Dr. Lúcio Flávio e do CFM. Para ele, não existem justificativas plausíveis para a aprovação da portaria, visto que o único a ser prejudicado futuramente é a própria população brasileira, e ainda destaca que já existe uma avaliação feita para validar a qualidade dos cursos oferecidos no País, que é feita pelo próprio Ministério da Educação.
“Para a Associação, a proibição de abertura de novos cursos de Medicina representa um retrocesso que compromete o desenvolvimento do País e o atendimento à população naquilo que é um direito humano fundamental, o direito à saúde. É preciso lembrar que o setor educacional é um dos mais regulados e avaliados do Brasil. Qualquer curso superior no País, incluindo os de Medicina, passa por avaliações frequentes conduzidas pelo Ministério da Educação e que envolvem diversos aspectos da formação profissional”, reforça o representante da ABMES.
Como é feita a avaliação do MEC?
Assim como ressaltou Sólon, o Ministério da Educação (MEC) possui um método único para averiguar a qualidade dos cursos oferecidos no Brasil: o Sinaes.
Criado em 2004, o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes) tem o objetivo de “assegurar o processo nacional de avaliação das instituições de educação superior, dos cursos de graduação e do desempenho acadêmico de seus estudantes”, conforme indica o Art. 1º da Lei 10.861.
Esse sistema possui três pilares: a avaliação das instituições, dos cursos e do desempenho dos estudantes, que dependem de autoavaliação, avaliação externa, Enade, avaliação dos cursos de graduação e instrumentos de informação como o censo e o cadastro, que resultam em notas como:
- Conceito Preliminar de Curso (CPC): que avalia a qualidade dos cursos;
- Índice Geral de Cursos Avaliados da Instituição (IGC): que avalia a qualidade das faculdades e universidades;
- Conceito Enade: que avalia os alunos;
- Indicador de Diferença dentre os Desempenhos Observado e Esperado (IDD): que mostra o quanto a faculdade acrescentou ao conhecimento do aluno;
- Conceito de Curso (CC): que é a nota final dada (e mais importante) ao curso, desenvolvida após uma visita in loco (presencial) nos cursos.
Questionado sobre a opinião do Conselho sobre a eficácia das avaliações do MEC, o coordenador da Comissão de Ensino Médico foi objetivo em sua resposta: tanto ele, quanto o CFM, acreditam que as avaliações feitas pelo Ministério são excelentes e feitas por excelentes profissionais, porém o grande problema é a sua inconsequência.
“As escolas [com avaliações] insuficientes deveriam ser fechadas ou recuperadas, e aquelas que não conseguem melhorar não deveriam abrir vestibular, já que estão formando maus profissionais. As avaliações são competentes, são bem feitas, são adequadas, mas, historicamente, são inconsequentes. Essa que é a nossa preocupação”, evidencia Lúcio Flávio.
É importante ressaltar que todas essas avaliações possuem conceitos que vão de 1 a 5, sendo que 1 e 2 são considerados insatisfatórios e podem resultar em penalidades ou na perda de benefícios.
Todos esses quesitos são avaliados a cada três anos, ou seja, todos os cursos são avaliados de forma independente trienalmente, inclusive os de Medicina, e os resultados são divulgados publicamente por tabelas e também pelo site e-MEC, que possui todos os dados das instituições de ensino brasileiras.
As últimas avaliações do curso de Medicina foram feitas em 2013 e 2016 e, coincidentemente, apenas duas instituições tiveram em ambos os anos conceitos insatisfatórios (2) no CPC, uma das avaliações que compõem o Sinaes. Procurando informações no e-MEC, foi possível perceber que essas instituições não sofreram nenhum tipo de penalidade ou registro de protocolo de compromisso, assim como é previsto na Lei do Sinaes.
Essas duas instituições tiveram nos dois triênios notas consideradas insatisfatórias no Enade, CPC e IDD, porém, curiosamente, o Conceito de Curso, considerado o mais importante e que é dado após uma visita presencial na instituição, são satisfatórios. Seria essa uma forma de mostrar que avaliações não presenciais feitas pelo MEC são ineficazes?
Questionados sobre a falta de registro de penalidades ou de protocolos de compromisso nos dois períodos de avaliação, o Ministério da Educação respondeu com uma nota explicando como funciona conceitualmente o CPC e IGC, justificando que essas notas não podem ser comparadas em períodos diferentes e elas, separadamente, não resultam em nenhum tipo de consequência para o curso ou para a instituição de ensino, é preciso levar em conta outros fatores.
“Os cursos com CPC insatisfatórios (1 e 2) não serão submetidos imediatamente a processos de penalização regulatória. Estes cursos com CPCs insatisfatórios serão objeto de análise do histórico avaliativo de acordo com as dimensões previstas no Sinaes e poderão ter processos de protocolo de compromisso ou, no limite, de processos de supervisão, em casos que se verifique de fato fragilidades nos mesmos”, informou o MEC.
O Ministério também informou que elaborará “um novo conjunto de indicadores mais capazes de apreender os resultados da qualidade de cursos e instituições, que irão complementar os atuais indicadores existentes e superar suas limitações”. Além disso, a Portaria 328 também prevê a instituição de um grupo de trabalho para reorientar a formação médica, considerando cursos já existentes, oferta e o currículo atual de Medicina.
Ou seja, apesar das avaliações e indicadores feitos periodicamente pelo MEC, atualmente, é possível concordar com o Dr. Lúcio Flávio sobre a ineficiência e inconsequência dos mesmos. Se não há uma repreensão rápida ou formas de exigir uma reestruturação e melhoria eficiente das instituições de ensino, como garantir que os alunos têm acesso a um curso de qualidade?
A redação da Revista QB também entrou em contato com essas duas instituições para saber se tinham recebido algum tipo de contato ou direcionamento do MEC, porém uma respondeu dizendo que não iria se pronunciar sobre o assunto e a outra não retornou até o fechamento desta reportagem.
Boa fé ou interesse financeiro?
Ainda segundo o diretor-executivo da ABMES, Sólon Caldas, a principal motivação do apoio das entidades médicas foi “frear a formação de profissionais na área de modo a não gerar uma saturação do mercado”. Em outras palavras, evitar que a profissão se desvalorize e que, consequentemente, os salários desses profissionais sejam prejudicados.
Laura Camargo Macruz Feuerwerker, doutora em Saúde Pública e professora da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP/USP), concorda com a afirmação da ABMES e ainda por cima critica a aprovação da portaria: “os únicos beneficiados com a suspensão da ampliação de vagas são os médicos, que estão, corporativamente, defendendo um mercado de trabalho privilegiado. Além de que essa portaria é extremamente negativa do ponto de vista das necessidades de saúde da população brasileira”.
Mesmo com os 491.468 médicos registrados nos Conselhos Regionais de Medicina em 2018, segundo dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), em 2017 o maior salário da categoria foi de R$ 25.520 para um médico ginecologista e obstetra contratado em São Paulo. Esse valor corresponde a 26,7 vezes o salário mínimo nacional.
Matheus William, 19, está no fim do primeiro ano da faculdade de Medicina, e um dos fatores decisivos para seguir esta carreira foi sua infância humilde em hospitais e sempre dependendo do Sistema Único de Saúde (SUS). Por isso, cresceu admirando profissionais da área da saúde e escolheu essa profissão para conseguir ajudar pessoas de forma direta, do mesmo jeito que foi ajudado quando mais novo.
Entretanto, mesmo para ele, que possui paixão pela profissão e pelo curso, é difícil negar que a questão financeira não está envolvida no apoio de conselhos e associações acerca desta medida. “Seria inocência acreditar que a questão financeira não está envolvida nesta portaria. Eu mesmo já ouvi de profissionais formados que o mercado está cada vez mais competitivo e o salário, cada vez menor. Infelizmente, a preocupação com o salário que esbanjam é maior que a preocupação com a fila do SUS, que só cresce”, desabafa o jovem.
Em resposta se a medida seria corporativista e se a saturação do mercado seria um fator decisivo no apoio da portaria, Dr. Lúcio Flávio foi enfático ao dizer que essa não é a preocupação principal do Conselho Federal de Medicina. “Nós estamos preocupados com a qualidade da formação do médico, porque a nossa expectativa é que o médico tenha condição de identificar um infarto no miocárdio, um AVC, uma dengue, um agravo de risco à vida. Essa preocupação é uma preocupação da sociedade, as pessoas querem ser bem assistidas por profissionais bem formados. Esse é o foco!”, reforça.
Entretanto, ainda durante a entrevista, o coordenador e conselheiro do CFM não ignorou a questão salarial: “obviamente que, quanto mais profissionais forem sendo formados, isso vai impactar nos honorários dos médicos. Ninguém desconhece isso, mas a nossa luta não é nesse sentido”.
Muitos médicos, mas para poucos estados
Algo que todos concordam, e não é a motivação da aceitação da portaria, é que um dos maiores problemas que o Brasil precisa enfrentar é a distribuição de profissionais pelo País.
Mesmo com o aumento das faculdades de Medicina nos últimos anos – de 2003 a 2013 foram criados novos 178 cursos – a desigualdade na distribuição médica não diminuiu. Segundo todas as fontes, isso se deve à falta de infraestrutura para que o médico consiga se estabilizar e atuar em cidades menores e no interior do Brasil.
Alexandre Padilha, médico e ex-ministro da Saúde, acredita que demorará mais alguns anos até que essa descentralização seja algo visível, dado que isso acontecerá com a formação de um novo ciclo médico, algo que leva, no mínimo, seis anos para acontecer.
Porém, Padilha também considera que a falta de infraestrutura seja um dos motivos cruciais para que não haja profissionais da saúde em regiões mais isoladas: “quando se estabelece um congelamento dos recursos da saúde (PEC 241, que congela gastos em saúde e educação por 20 anos), você restringe a capacidade dos municípios e dos governos estaduais em investir na estrutura das unidades de saúde, na manutenção das unidades, nos recursos de insumos, de medicamentos, o que, de certa forma, desestimula a presença do profissional médico que vai para essas regiões”, conclui.
“Estímulos governamentais que vão além de um bom salário. Já ouvi muito que em centros médicos isolados existe uma enorme falta de suprimentos básicos. É desmotivador para um médico trabalhar em um lugar onde não tem o mínimo para salvar o paciente, em que faltam exames, medicamentos e itens de enfermaria. Falta infraestrutura”, reclama Matheus William, que, apesar de ainda ser apenas um estudante, já conhece os desafios de tentar exercer a medicina em locais mais afastados do País.
Atualmente, as regiões Norte e Nordeste são as que mais sofrem com a falta de médicos, em que há, em média, 1,16 e 1,41 médicos para mil pessoas, respectivamente. Em contrapartida, na região Sudeste, Sul e Centro-Oeste esse número duplica para 2,81, 2,31 e 2,36.
Para Lúcio Flávio, é preciso políticas e ações que deem a chance de um médico se fixar em uma cidade que fica afastada dos grandes centros. “O que fixaria o médico lá no grande interior brasileiro é uma carreira de estado para o médico, investimento em infraestrutura e condições de trabalho no hospitalzinho para o médico trabalhar, para ter um laboratório”, explica.
Além disso, para o coordenador do Conselho de Ensino Médico, não se resume apenas ao entorno do hospital, é preciso ter uma boa qualidade de vida no local também e isso vale para qualquer profissional: “porque o médico, um advogado, o arquiteto não vai mudar para o interior que não tem uma escola, não tem um cinema para ir com o companheiro. Quer dizer, não há essa distribuição para os vazios existenciais e políticos, isso precisa mudar, não é preciso criar novas escolas de medicina para alterar essa realidade”.
Por outro lado, Sólon Caldas concorda em partes: “isso é muito mais um problema estrutural do que uma questão de ter muito ou pouco médico. O governo tem que repensar a política de condições para fixar o profissional num determinado local. Trata-se, portanto, de um problema de política pública que não vai ser resolvido estancando a oferta de mais cursos de Medicina no País”.
Essa situação é ainda mais agravada no interior dos estados que já não possuem muitos profissionais da saúde. Segundo dados da Demografia Médica, no interior do Norte o número de médicos por mil habitantes cai drasticamente para 0,47, enquanto nas capitais o valor é de 2,73. Já no Nordeste, o interior possui apenas 0,54 médicos por mil habitantes, enquanto nas capitais o valor é oito vezes mais alto (4,54).
Desde 2013, uma medida do governo federal foi criada para aumentar esses números e dar assistência àqueles que estão localizados em áreas afastadas, mas o programa também pode ser prejudicado pela Portaria 328: o Mais Médicos.
Mais Médicos até quando?
Desenvolvido com a finalidade de aumentar os recursos humanos na área médica para o SUS, levando médicos brasileiros para essas cidades mais carentes e também trazendo médicos intercambistas, em sua maioria de países sul-americanos e de Cuba, esse projeto completou cinco anos em 2018.
Alexandre Padilha também foi o Ministro da Saúde responsável pela criação do programa, e diz que os maiores ganhos do projeto foram: dar a milhares de brasileiros a chance ter um médico de qualidade e com formação para a atenção básica de saúde próximo da sua comunidade e por ser a primeira vez que o Ministério da Saúde e da Educação aliaram-se para regular a formação de médicos no País. “As diretrizes da formação dos profissionais pelo Mais Médicos induziram as escolas médicas a terem uma diretriz curricular e um perfil de formação mais próximo à realidade da população, das comunidades, da atenção primária em saúde, formando um médico especialista em gente”, conta.
Luís Marcelo Aranha, 57, é formado em Medicina e há mais de 28 anos mora na Amazônia, onde é professor e pesquisador do Instituto de Ciências Biomédicas da USP e também supervisor do Mais Médicos há mais de quatro anos. Ele acompanha o projeto desde o início, lidando com os percalços encontrados no meio do caminho.
Segundo dados do governo, esse projeto já levou 18.240 médicos a mais de 4 mil municípios e também a 34 distritos de saúde indígena, sendo um reforço ao sistema de saúde público brasileiro.
Marcelo afirma que esses anos têm sido um gratificante desafio, já que ele é responsável por fazer a capacitação dos recém-chegados profissionais e também conhecer a realidade destes municípios esquecidos por médicos residentes dos grandes centros. “Atualmente, supervisiono nove médicos em três pequenos municípios de 7 a 15 mil habitantes em Rondônia”, conta.
Nesses quatro anos de coordenação, seu maior dilema foi lidar com gestores de saúde desqualificados para o cargo e que não sabiam administrar o sistema de saúde da região.
Segundo o professor e pesquisador, no início do projeto, houve muita rejeição e discriminação por parte de médicos brasileiros radicados naqueles municípios, que não gostavam da ajuda de médicos intercambistas. Por outro lado, a população aceitou de braços abertos o Mais Médicos.
Apesar disso, Marcelo é totalmente a favor da medida que proíbe a criação de novos cursos. De acordo com sua vivência, o aumento em massa de novos cursos não trouxe novos médicos para a região. Assim como os outros entrevistados, ele acha que isso deve-se à falta de infraestrutura.
“Os médicos (aqueles que não são do Mais Médicos) dificilmente fixam-se em municípios pequenos. São inóspitos, falta conforto, falta um plano de cargos e salário, falta estabilidade no emprego. Os humores políticos, a falta de planejamento adequado e a fragilidade dos gestores municipais proporcionam este cenário. Além disso, a maioria dos médicos formados não são oriundos do mesmo estado da faculdade e, ao se formarem, retornam para a sua cidade de origem”, ressalta. Marcelo também acha que essa moratória não irá prejudicar o Mais Médicos
Entretanto, a Portaria 328 vai totalmente contra um dos pilares do programa: o aumento das vagas de cursos de Medicina em regiões com menor relação de vagas e médicos por habitante.
Art. 2o Para a consecução dos objetivos do Programa Mais Médicos, serão adotadas, entre outras, as seguintes ações:
I - reordenação da oferta de cursos de Medicina e de vagas para residência médica, priorizando regiões de saúde com menor relação de vagas e médicos por habitante e com estrutura de serviços de saúde em condições de ofertar campo de prática suficiente e de qualidade para os alunos.
A doutora em Saúde Pública Laura Camargo Macruz Feuerwerker concorda com a eficácia do Mais Médicos, reforçando que a medida foi eficiente com relação ao provimento emergencial de médicos para a atenção de saúde básica. Entretanto, ela ressalta com urgência o quão prejudicial essa medida será para a continuidade e independência do programa.
“Ainda faltam médicos em diferentes pontos de atenção (no SUS e na saúde suplementar) – na urgência-emergência, em especialidades específicas (como a neonatologia, a anestesia, por exemplo), sem falar na atenção básica. Essa portaria prejudica completamente a segunda parte do Mais Médicos, que estava destinada a reduzir a dependência do Brasil com relação aos médicos estrangeiros para a atenção básica e diminuir a escassez em outros âmbitos de atenção”, ressalta a doutora Laura.
O ex-ministro da Saúde ainda diz que essa medida foi uma forma de o governo fugir da responsabilidade de garantir um ensino médico de qualidade no Brasil, visto que essa medida prejudica tanto instituições que comprovadamente possuem qualidade quanto aquelas que realmente precisam melhorar.
“Ao fazer uma portaria que trata de forma homogênea no Brasil o espaço das criações de novos cursos de Medicina, tratando da mesma forma as escolas que têm muita qualidade e aquelas que não têm, sejam elas públicas ou privadas, demonstrou claramente que não há [por parte do governo] nenhuma vontade de enfrentar um problema decisivo para a ampliação da saúde do nosso País: que é termos um processo de formação médica de qualidade no Brasil”, reforça Alexandre Padilha.
Saúde sempre deve ser prioridade
Para o diretor do Departamento de Inteligência de Mercado do Quero Bolsa, Pedro Paulo Balerine, quem deve definir, por si, o aumento ou a diminuição de vagas em cursos, especialmente o de Medicina, é o mercado: “o melhor agente econômico para definir a oferta e demanda do curso de Medicina é o mercado. Onde houver demanda por Medicina, o mercado deveria ter a liberdade de oferecer”.
Além disso, com essa barreira, a tendência é de que as mensalidades, já exorbitantes, de cursos privados de Medicina aumentem ainda mais, seguindo a lei de procura e oferta, visto que, mesmo que seja barrada a criação de novos cursos e vagas, a demanda de interesse na profissão não deve diminuir.
Entretanto, ele reforça que a preocupação com a qualidade dos cursos é correta e deve ser uma preocupação das entidades médicas e também do MEC, porém o ideal seria que a oferta de novos cursos não fosse proibida.
Para o ex-ministro da Saúde, a solução para os problemas com a qualidade do ensino médico brasileiro deveria ter sido a criação de um exame nacional que, além de medir a qualidade das escolas médicas, também iria penalizar instituições com resultados insatisfatórios. De acordo com Padilha, a implementação dessa prova também era prevista pela Lei Mais Médicos e foi realmente executada, porém outra portaria do MEC fez com que o exame, intitulado de Avaliação Nacional Seriada dos Estudantes de Medicina (Anasem), fosse apenas uma simples avaliação bienal, mas que não traz nenhuma punição ou sanção para aquelas que tiveram em sua maioria um resultado insatisfatório.
“A medida do governo [Portaria 328] foi uma canetada de quem abriu mão de enfrentar os desafios que nós temos para formar médicos de qualidade no País. Esse é um tema importante para ser enfrentado, e, ao mesmo tempo, frustra a possibilidade de milhares de jovens poderem fazer um curso de Medicina futurante”, queixa Alexandre Padilha.
Independentemente do motivo, seja ele nobre ou mercenário, quem sentirá na pele os reflexos dessa medida será a saúde da população brasileira, seja pela falta de novos cursos ou pelo mau ensino oferecido nas instituições já existentes. Porém, algo de que não podemos discordar é que é preciso que, além da qualidade, seja oferecida infraestrutura para que outros profissionais da saúde também possam estar presentes em todo o Brasil, seja nos grandes centros ou em cidades isoladas de Rondônia.
“É preciso criar outras políticas de investimento lá nas pequenas cidades e no interior. Não precisa só de médico, precisa de enfermeiro, farmacêutico e de outros profissionais da área da saúde, porque o médico não pode trabalhar sem apoio e sozinho. É preciso de toda uma política de criar condições de saúde no grande interior, isso é o que CFM defende”, finaliza Lúcio Flávio Gonzaga Filho.